INIMIGOS INVISÍVEIS

Rabino Nilton Bonder


 

 

O rabino ouviu um ruído e foi olhar. No chão estava o Marquinhos filho do vizinho que tinha caído da varanda e sangrava profusamente. Mesmo sendo uma pessoa de idade tomou o menino nos braços e começou a correr desesperado para o Hospital a poucas quadras. No caminho encontrou uma senhora que ao vê-lo esbaforido ao longe, gritou: "Calma rabino... vai dar tudo certo. Não se apresse tanto.... Deus vai ajudar... e o senhor já tem idade para correr assim com uma criança no colo!". Ela então se aproximou e, em pânico, constatou que se tratava de seu neto. "Ai meu Deus! Meu netinho! Corre rabino, corre, pelo amor de Deus."

Poderia ser uma versão da propaganda de televisão em que uma mãe é entrevistada sobre seu filho estar estudando fora do país. Ela se diz feliz que ele esteja nesta condição, e racionalmente explica que é para o seu próprio bem e progresso. Um instante depois, ao telefone, histericamente implora: "Volta meu filho! Volta!".
Para podermos identificar objetivos e inimigos precisamos saber quem somos nós e o que queremos. Somos aqueles que dizem "Deus vai ajudar" ou somos aqueles que dizem "corre rabino, corre"? Somos a mãe que quer que o filho progrida ou a mãe que diz "volta meu filho, volta!"?

Que complicado. Há o discurso e há a vontade. Não um discurso vazio, mas um discurso que realmente acreditamos, que é parâmetro fundamental de referência, mas que é discurso. A categoria de "meu netinho" ou "meu filho", ou mais genericamente, de "diz respeito a minha vida" coloca o discurso no lugar do discurso.

O século XX foi o século em que o "politicamente correto" funcionou. Discursos de direita e de esquerda se construíram no iluminismo da "ética" e da opinião pública. E sabendo o que era "correto" cada um tinha os seus inimigos. Mas não era o "correto", era apenas o "politicamente correto". Por que quando se trata do nosso netinho então o "politicamente correto" tem um acerto de contas a fazer com o "correto".

E o século XXI chegou com esta surpreendente novidade: é do nosso netinho que se trata. O futuro é cheio do "outro" ao contrário do que supunham os analistas. Falavam eles de um mundo de computadores, cada um trabalhando em casa, menos horas de trabalho, mais automatização, mais "eu" e menos "os outros" em nossas vidas. Porém o mundo globalizado não é um mundo grande, é um mundo pequeno cheio de gente. E se deixa-las de fora parecia possível, lá vêm elas mexer com nossos netinhos. De inexistentes tentamos reclassifica-las na categoria de inimigos.

E o cacoete do século passado (afinal era o ano passado) ainda está presente. Todos querem inimigos. E que não se diga isso apenas dos americanos. O terceiro mundo acha que os americanos são o seu Afganistão. Durban também buscava seus inimigos invisíveis e ficou sem guerra alguma. A verdade é que estes inimigos estão cada vez mais invisíveis camuflados em discursos. A ponto de desconfiarmos.

O século XXI estará repleto do outro. É um outro cada vez mais numeroso - nunca existiram tantos outros em nenhuma era. E esse outro vive muito - nunca viveram tanto os outros em nenhuma era.

Há malícia? Sim. Há lobos fingindo-se de ovelha? Sim. Nunca foi diferente. Só que hoje nós estamos soterrados de discursos. Sabemos o que é correto, "politicamente correto", mas não nos serve. Não é o correto o suficiente para representar quem nós somos. Fazemos o tempo todo a tática de usar o "politicamente correto" para defender o que nos parece absolutamente correto. Até o inimigo aprendeu a fazer isso. O inimigo nos confunde porque ele faz o que nós fazemos. Eu conheço o inimigo porque eu penso como ele. Na verdade, me apavora perceber as semelhanças entre eu e meu inimigo.

Chegou a hora de revelar: "Corre rabino.... corre! É o nosso netinho!".

Despertemos para a miséria, para a exploração do homem pelo homem, para as calamidades climáticas e do meio ambiente, para o temor estampado no rosto do outro. Mais que tudo, comecemos a desmontar a visão e a mentalidade de fobia do outro e de sonharmos com um mundo de privacidade. Uma espécie de des-socialização que nos leva a ser novamente nômades e coletores. Nômades porque podemos estar em qualquer lugar, sem apreço e carinho pelo lugar; e coletores porque não plantamos para o futuro, apenas para o nosso breve futuro pessoal.

Comecemos a desmontar o discurso de que "Deus ajuda" quando se trata do outro, para descobrirmos, quando chegamos mais perto, tratar-se de nosso netinho. Corre rabino!

Onze de setembro não é a data do fim da globalização, nem a data da primeira guerra do século XXI. É o fim do "politicamente correto", o fim de uma ilusão. Porque quanto mais tenebrosa, quanto mais malévola e descabida a violência, mais ela será de nós mesmos e não do outro. No absoluto do outro descobrimos a nós mesmos.

No calendário judaico estamos no início de um novo ano. Período de reflexão e particularmente um tempo de ouvir o pedido histérico (não da mãe do comercial) mas dos profetas:

"Volta meu filho, volta!".

 

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