O QUE É ECO-KASHER? Arthur Waskow |
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Serão kasher os tomates plantados em terras encharcadas de agrotóxicos? Podemos comê-los numa festa de casamento na sinagoga? É kasher o papel de jornal produzido pela derrubada de uma floresta antiga e in-substituível? Podemos usá-lo num jornal judaico? Um banco que investe dinheiro de seus depositantes numa companhia que polui os mares é um lugar kasher para uma organização judaica depositar seu dinheiro? Se ao dizer kasher nos referimos a um sentido mais amplo de boa prática, que se nutre na fonte de tradição e sabedoria judaica acerca da relação entre seres humanos e a terra, então talvez a resposta é que nenhuma dessas formas de agir é eco-kasher. Quem diz isto? E de onde vem esta estranha palavra eco-kasher? Para responder, precisamos ir ao início de tudo. Bem ao início. Há milhares de anos os judeus acreditam que comer importa. Importa de verdade, para D'us, para o cosmos, para a terra e para a história. Desde o início. De acordo com o mito judaico da criação, a própria história humana começa quando os seres humanos violam uma ordem divina sobre o comer. D'us disse que havia um fruto no Éden que não era kasher. Adão e Eva comeram-no assim mesmo - desta forma destruíram o Jardim das Delícias primordial. O que se seguiu foi a luta entre Adão e Adamá, entre o homem e a terra, entre os seres humanos e o humo. Com dor e suor as pessoas trabalhavam para produzir seu alimento, e o humo, com hostilidade, produzia espinhos e cardos. Comer - e não o ato de matar, fazer fogo ou sexo - era a metáfora judaica para criar problemas. Note que criar problemas para D'us acaba significando Ter problemas com a terra. No âmago desta lenda está a afirmação de que, sendo o comer uma conexão fundamental entre os seres humanos e a terra, um defeito no processo alimentar - consumir de forma incorreta o que provém da terra - só pode resultar em problemas entre a terra e os humanos. Tão profunda era a percepção desta conexão entre formas corretas de se alimentar e o frutificar da terra, que todo o ciclo de celebrações sagradas se centrava na comida. Primeiro, algumas comidas eram vistas como sagradas e outras como proibidas; e, segundo, o povo recolhia os produtos da terra num só lugar, no Templo em Jerusalém - lá, os grãos e a carne, o pão e o vinho, o azeite e a água eram consagrados. Ao mesmo tempo, à terra e às pessoas deveria ser dado um descanso sagrado a cada sete dias, a cada sete anos, e um ano após o sétimo ano, isto é, a cada cinqüenta anos. Assim, tanto a terra como as pessoas poderiam saborear no presente um gostinho de paraíso passado e futuro; do Éden passado, quando a terra e os humanos viviam em paz; e da Era Messiânica que está por vir, quando a terra e os humanos não mais estarão em guerra. A destruição do Templo e a dispersão do povo judeu fora da Terra de Israel rompeu a relação direta entre alimento e terra, e tornou necessária uma nova forma de santificar a comida. O Talmud, então, definiu a mesa de jantar de cada família como um altar sagrado, e elaborou o conceito de kashrut muito além de sua simplicidade bíblica. Sem uma terra produtiva para distingui-los, os judeus usaram a kashrut para tronar suas mesas na diáspora tão diferentes, que a cada refeição sua identidade como povo se reafirmava. Isso funcionou durante quase dois mil anos; os judeus levavam sua terra de país em país na forma de kahsrut, seu altar na forma da mesa de refeições, e sua relação serena com a terra na forma do descanso semanal (mas não o de cada sete ou cin-üenta anos) do Shabat. Mas na nossa geração isto se rompeu. Agora a terra toda produz alimento para todos os povos. Para produzir mais alimentos e outros produtos de consumo, a raça humana subjugou a terra - submeteu-a à poluição e à destruição. E a terra está respondendo a esta exploração com ameaças de degradação atmosférica, desertificações, secas, inundações, fome e extinção de espécies. Praticamente desapareceu a noção de comida como algo sagrado. E também quase desapareceu a noção de um descanso sabático rítmico para a terra e seus habitantes. Nós mesmos estamos revivendo o Éden - de certa forma mais fértil; de outra, mais desastrosa. Durante os últimos trinta anos, nós, seres humanos, filhos de Adão, consumimos alguns frutos do planeta Terra, frutos da Árvore do Conhecimento, que tinham estado ocultos durante toda a história da humanidade: combustíveis fósseis, energia nuclear. E o resultado deste nosso consumo tem sido um grande acúmulo de riqueza, mas também um novo tipo de guerra com a terra. Comemos com tanto descuido que poluímos a terra, e ela responde nos envenenando. Nesta situação, o que aconteceu com a idéia e a prática de kashrut? Alguns judeus passaram a tratar toda a terra como sagrada e rejeitam a kashrut justamente por ser uma bandeira da diferenciação com outras culturas. Eles podem sentir-se bem com o vegetarianismo ou a macrobiótica; mas sentem-se bem menos à vontade com a idéia de uma dieta especificamente judia. Outros judeus continuam a manter kashrut, porque assim é ordenado na Torá, ou para afirmar sua identidade judia - mas raramente vêem alguma conexão com a proteção da terra. Existe alguma forma de repensar estas questões para conseguirmos um todo coerente, sanando nossas vidas como parte da terra enquanto afirmamos e fortificamos nossas vidas como judeus? Alguns judeus vêm tentando fazer isto nos últimos anos, religando a idéia de kashrut - o que nós nos permitimos comer - com alguns valores e obrigações mais amplos em relação à terra oriundos da tradição judaica. Eles se inspiram em alusões a preocupações éticas com a terra e seus habitantes, que alguns dizem estar subjacentes ao kashrut tradicional. Por exemplo: alguns estudiosos sugerem que a proibição de certas carnes foi a concessão relutante de uma ética profundamente vegetariana com uma comunidade de carnívoros inveterados. Alguns dizem que os métodos de abate ritual têm sua origem na preocupação com os animais, e teriam a intenção de minimizar sua dor. Mas os judeus que estão investigando novos sentidos para a kashrut estão olhando além das definições tradicionais (sem contudo rejeitá-las). É desta investigação mais profunda que surge o conceito de eco-kasher. No começo de 1990, um grupo denominado Instituto de Renovação Judaica começou a circular um artigo sobre uma nova compreensão de kashrut. Motivados por este artigo, líderes dos quatro maiores movimentos religiosos dentro do judaísmo e também ativistas preocupados com as questões do consumo e do meio ambiente se reuniram. Seu objetivo era refletir sobre alguns dos valores e éticas judaicos que pudessem estar conectados com aquilo que comemos. Na medida em que empreenderam esta tarefa, descortinou-se uma gama imensa de novas possibilidades. Algumas delas diziam respeito à própria comida. Outras questões surgiram quando começaram a examinar outras formas de comer - consumo de energia, papel, máquinas, investimentos de dinheiro. Seriam suficientemente próximas do conceito de comer para que se justificasse a aplicação sobre elas das diretrizes kasher ou treif? Estudaram, então, com maiores detalhes as noções de sim/não, conectado/desconectado, kasher/treif - distinções absolutas - que são parte essencial do conceito de kashrut tradicional. Quanto à comida, este comitê verificou categorias éticas do judaísmo tradicional que se preocupassem com a relação entre os seres humanos e as demais criaturas de D'us. Algumas delas foram: Tassar baalei chaim - literalmente "sofrimento daqueles que possuem vida", e tradicionalmente compreendido como uma forma de respeito para com os animais. Alguns membros sugeriram que se poderia estender proibições sobre o consumo de animais criados em "fazendas-fábricas" de super produtividade. Talvez pudesse ser até mesmo estendido para o que concerne às plantas - por exemplo, restringindo o mal-uso de pesticidas e recombinações genéticas e proibindo o consumo deste tipo de produto. Baal tashchit - literalmente "não arruinando" a terra. Esta norma se iniciou em tempos bíblicos, com a proibição de cortarem-se árvores do inimigo. Foi então estendida para a proteção, todo tipo de árvore e outros aspectos da natureza. Entre estes incluía-se até mesmo a proibição do desperdício de móveis ou outros objetos nos quais houvesse misturado o labor humano a produtos da terra. Ao refletir sobre este conceito, o comitê sugeriu a possibilidade de que fosse incluído o envenenamento da terra com pesticidas químicos para a produção de alimentos, favorecendo técnicas orgânicas e naturais. Shmirat haguf - a proteção do corpo. Poderia ser compreendido como excluindo o consumo de produtos que contivessem carcinógeno e/ou hormônios. Se estenderia a outros itens quase-alimentos, como o tabaco e doses excessivos de álcool. Esta categoria também envolveria as questões de anorexia e glutonice, que podem levar a grandes sofrimentos físicos e psicológicos. Tsedaká - compartilhando comida com os famintos. Poderia gerar a proibição do consumo de qualquer alimento ou da participação em qualquer refeição comunal, ao menos que uma proporção de seu custo se destinasse à aquisição de comida para os desprovidos. Berachá e Kedushá - a idéia tradicional de que ao comer-se devemos afirmar conscientemente o senso de sagrado e de bênção. O comitê apontou para a possibilidade de incluir-se a conscientização de que, no atual estado, precisamos matar plantas e animais e que o que hoje nos mantém está conectado com o desfalcar da terra. A simples menção cotidiana poderia ter um impacto sobre nosso autocontrole, influenciando um problema que é também de comportamento. No que diz respeito a outras formas de comer, de relação entre o ser humano e a criação, os membros do comitê chamaram a atenção para o fato de que na era bíblica os judeus também se interessaram por outras conexões entre o ser humano e a terra. Apesar de não terem criado regulamentos tão detalhados como para a comida, consideravam como parte de seu interesse. A chuva, por exemplo, era vista como uma conexão crucial com a terra. Sem sua presença, nenhuma comida poderia ser produzida; e em Israel, em particular, esta era uma questão sensível. Uma das preocupações maiores da liturgia judaica é justamente com a chuva, o Talmud mesmo especifica uma série de jejuns e orações para momentos de seca. As vestimentas eram mais um destes conectores com a terra, e a Torá aponta para uma kashrut de roupas - não misturar-se linho com lã. A tradição rabínica não se interessou em elaborar muito sobre esse conceito. A energia foi outra interface. Madeira ou óleo de oliva eram as fontes de energia da época para obter-se luz e calor. Para o óleo de oliva conferiu-se uma aura de santidade - era usado para ungir sacrifícios no Templo, ungir reis e deu o nome ao rei dos reis, o mashiach (o ungido). Quanto à madeira é em relação a seu recolhimento que as proibições de trabalho no Shabat são inauguradas. A partir desta reflexão, o comitê considerou autêntica a busca de diretrizes judaicas para lidar com estes outros vínculos entre os seres humanos e seu meio ambiente. Nossa água e ar são constantemente poluídos, nossa mais importante fonte de energia - fósseis que não podem ser repostos ou renovados a não ser através de milhões de anos e radiação - apresentam-se como grandes perigos à rede de vida sobre a Terra. O comitê, então, se perguntou: - Como podemos desenvolver regulamentos de kashrut que se apliquem a este tipo de produtos que não se encaixam na categoria de alimentos, e como faríamos para que estes viessem a ser cumpridos? Assim surgiu o Projeto Eco-Kasher, que poderia ser resumido da seguinte forma: judeus que reconhecem na kashrut tradicional um importante vínculo com a Torá e com o judaísmo, mas que desejam, juntamente com sua observância, acrescentar a observância da eco-kashrut. O projeto se propõe a tornar público, periodicamente, listas de produtos e marcas que vão desde bastante recomendados até evite o mais que puder. O comitê e o projeto servem de base para estudo desta nova fronteira que talvez, um dia, possa ser normativa a todos os judeus. Na verdade, se olhamos com mais distância percebemos as profundas implicações de um projeto como o Eco-Kasher e vemos que aponta para uma nova função do povo judeu. E estas implicações dizem respeito a que o povo judeu como um todo, e não apenas o indivíduo, estaria conscientemente envolvido com Tikun Olam - a cura do mundo. Pelo menos desde que o Império Romano arrasou a comunidade judaica da Terra de Israel, o povo judeu se sentiu enfraquecido a tal ponto de conceber-se como incapaz de alterar ou afetar a história. Em apenas cinqüenta anos o povo judeu ergueu-se da mais terrível devastação e obteve o mais extraordinário sucesso econômico e político de sua história. O desafio agora é colocar-nos numa posição de podermos contribuir e ajudar na cura, no sarar do planeta. Surge
algo novo. Nossa escolha sempre foi entre preservar nossa própria especificidade
ou abandonar o judaísmo e sair pelo mundo bancando lutas mais universais.
O que o projeto de eco-kashrut representa é que podemos fortificar nossa
distinção enquanto judeus e trabalhar para sanar ao mesmo tempo as necessidades
e feridas da terra; podemos lutar para curar-nos a nós mesmos através
da colaboração na e pela cura da terra, curar-nos a nós mesmos. Podemos
assim afirmar nosso judaísmo colaborando não apenas com todos os demais
povos mas também com todas as demais espécies. Ao fazermos isto, estamos
escolhendo vida num tempo de tanta crise. Arthur Waskow é escritor e membro fundador do ALEF - Institute for Jewish Renewal.
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