OBSERVÂNCIA E MUTAÇÃO MUDANÇA, FLEXIBILIDADE E DESENVOLVIMENTO DENTRO DA HA-LACHÁ autor: Rabino David Golinkin |
|
|
||
No início do século XIX um dos fundadores e porta-vozes da Ortodoxia foi o rabino Moshé Sofer, o Chatam Sofer. Ele tornou a frase da Mishná: "Tudo que é novo é proibido pela Torá" no slogan do movimento. Por exemplo, ele se opunha a transferir a mesa de leitura da Torá do meio da sinagoga para a frente porque "tudo que é novo é proibido pela Torá". Em 1865, 71 rabinos ortodoxos se reuniram na cidade de Michalovze e decretaram que é proibido rezar na sinagoga com coro ou em outra língua que não o hebraico, porque "tudo que é novo é proibido pela Torá." Esses rabinos também se opunham à educação e aos trajes modernos porque "tudo que é novo é proibido pela Torá". O status-quo no Judaísmo se tornou um princípio sagrado. Esse ponto de vista é total-mente oposto à posição clássica do Judaísmo, refletida na história da Halachá e da codificação através dos tempos. A visão clássica se expressa na bem conhecida historinha sobre Moisés na academia de rabi Akiva: Em nome de Rav, Rabi Judá contou: Quando Moisés ascendeu ao Monte Sinai, encontrou o Senhor, Bendito Seja, ocupado em colocar ornamentos nas letras da Torá. Disse Moisés: "Senhor do Universo, quem continuará a colocar os ornamentos?". ELE replicou: "Aparecerá um homem, ao fim de muitas gerações, Akiva ben Josef, que irá expandir sob cada ornamento muitas e muitas leis." "Senhor do Universo", disse Moisés, "permita-me vê-lo". O Senhor respondeu: "Vire-se ". E Moisés foi, e sentou-se atrás da oitava fila da Academia de Rabi Akiva, mas, incapaz de acompanhar as argumentações deles, quase desmaiou. Quando, porém, Rabi Akiva chegou a um certo assunto e seus discípulos disseram: "Rabino qual é a sua fonte?" e Akiva replicou: "É a lei dada a Moisés no Sinai", Moisés se sentiu reconfortado. Então ele retornou ao Senhor, Bendito seja, e Lhe disse: "Senhor do Universo, o Senhor tem tal pessoa e ainda assim transmite a Torá por meu intermédio?". Muitas mensagens importantes se ocultam nessa bela história. Uma é que Moisés, nosso mestre, que nos deu a Torá no Monte Sinai, já não entendia as discussões Haláchicas ocorridas na Academia de Rabi Akiva. A passagem do tempo tinhas deixado sua marca. Como qualquer outro organismo vivo, a Torá tinha se modificado, através dos anos, de tal modo que o próprio Moisés não a reconhecia. Não há necessidade de confiar somente na lenda. As mudanças da Halachá estão refletidas em quase todos os capítulos da Mishná e em toda página do Talmud da Babilônia. Assim, por exemplo, encontramos dezenas de vezes na literatura rabínica, a expressão "Antigamente, eles faziam assim e assim .... Quando X ocorria, um determinado rabino decretava que aquilo deveria ser feito de outro modo." A seguir veremos uns poucos exemplos das centenas de mudanças na Halachá encontradas na literatura rabínica. Essas mudanças foram feitas por variadas razões, e aqui as dividimos em várias categorias gerais: MUDANÇAS DEVIDAS A DESENVOLVIMENTOS SOCIAIS E ECONÔMICOS 1. Nossos rabinos ensinavam: Antigamente, quem encontrasse um objeto perdido costumava anunciar isso no Templo durante os três Festivais de Peregrinação e durante os sete dias seguintes ao último Festival, para dar tempo de três dias para retornar ao seu lugar de origem, outros três dias para voltar ao Templo, e um para fazer o anúncio. Depois das destruição do Templo, foi decretado que esses anúncios deveriam ser feitos nas sinagogas e academias. Mas quando a perseguição aumentou, foi decretado que já era suficiente que os vizinhos e conhecidos fossem informados do achado .... Nossos Rabinos ensinavam: Antigamente, quem perdesse alguma coisa costumava informar as marcas de identificação do objeto e ficar com ele. Quando aumentou o número de oportunistas, foi decretado que deveriam dizer-lhe: "Traga testemunhas de que você não é um vigarista, e aí então poderá ficar com o objeto." 2. Antigamente, eles costumavam aceitar testemunho de qualquer pessoa na Lua Nova, mas depois dos maus atos dos hereges eles decretaram que o testemunho só poderia ser aceito de pessoas que eles conhecessem. Antigamente, eles costumavam acender fogueiras (para anunciar na Diáspora a chegada da Lua Nova), mas depois dos maus atos dos samaritanos eles decretaram que deveriam ser enviados mensageiros em todas as direções. 3. Um empréstimo garantido por um Prozbul não fica cancelado pelo Ano Sabático. Isto é uma das coisas que Hillel, o Velho, decretou. Quando viu que as pessoas recusavam fazer empréstimos uns aos outros quando se aproximava o Ano Sabático e transgrediam o que está escrito na Torá (Deut. 15:9) ... ele decretou o Prozbul. Esta é a fórmula do Prozbul: "Afirmo a vocês, Fulano e Sicrano, os juizes do lugar tal, que cobrarei qualquer débito a mim devido, quando eu assim o quiser." E os juizes ou as testemunhas assinavam embaixo. MUDANÇAS DEVIDAS À SENSIBILIDADE MORAL 1. Antigamente, quem soubesse proferir as palavras prescritas para a cerimônia das Primícias as recitava, e quem não soubesse repetia as palavras depois do sacerdote; mas quando as pessoas evitavam trazer suas Primícias por ficarem envergonhados, foi decretado que tanto aqueles que sabiam, quanto aqueles que não sabiam deveriam repetir as palavras do sacerdote de modo que ninguém se sentisse humilhado. 2. Nossos Rabinos ensinavam: Antigamente, se usava carregar comida para uma casa onde estivessem de luto - os ricos em cestas de prata e ouro, e os pobres em cestas de galhos finos trançados de salgueiro - e os pobres se envergonhavam. Por isso eles proclamaram que todos deveriam carregar comida em cestas de galhos finos de salgueiro, em deferência aos pobres. Nossos Rabinos ensinavam: Antigamente, se usava servir bebidas numa casa onde estivessem de luto - os ricos em jarras de cristal e os pobres em jarras de vidro colorido - e os pobres se sentiam humilhados. Então eles decretaram que todos deveriam servir bebidas em vidro colorido em deferência aos pobres. Antigamente, eles costumavam trazer para o enterro dos ricos uma carruagem muito cara, e para os pobres uma simples carroça - e os pobres se sentiam humilhados. Então decretaram que todos deveriam ser transportados numa carroça simples em deferência aos pobres. Antigamente, as despesas de enterro (mortalhas) eram mais difíceis para a família do morto, do que lidar com a sua morte, de modo que a família abandonava o morto e fugi-a. Até que Raban Gamliel não dando atenção à sua própria importância, foi enterrado em mortalhas simples e brancas - e desde então o povo seguiu seu exemplo. MUDANÇAS PARA BENEFÍCIO GERAL DA SOCIEDADE 1. Antigamente, um homem costumava mudar seu próprio nome, o da sua mulher, o da cidade dele e o da dela num documento de divórcio a fim de evitar constrangimentos. Raban Gamliel, o Velho, proclamou que tal pessoa deveria escrever: Fulano, e todos os outros nomes que ele tivesse e Fulana, e todos os outros nomes que ela tivesse - para benefício da sociedade de modo que as pessoas não a acusassem de casar novamente sem estar divorciada. 2. Antigamente, a testemunha costumava escrever: "Eu, Fulano, assinei como testemunha." Se sua letra pudesse ser encontrada em outros documentos, o Guet - certificado de divórcio - era válido; se não, não era válido. Raban Gamliel disse: "Um decreto dos mais importantes foi ordenado pelos Rabinos, o de que as testemunhas devessem escrever seus nomes completos (Fulano, filho de Sicrana) num Guet - para o benefício da sociedade." MUDANÇAS PARA O BENEFÍCIO DA PAZ Nossos Rabinos ensinavam: Antigamente, os enlutados costumavam ficar parados de pé, enquanto as pessoas passavam por eles para confortá-los. Mas havia duas famílias em Jerusalém que brigavam entre si, cada uma afirmando: "Passaremos primeiro". Então os Rabinos proclamaram que as pessoas deveriam permanecer paradas de pé, enquanto os enlutados passariam por elas. Este processo de flexibilidade Haláchica não chegou ao fim, ao término do período Talmúdico. Continuou através da Idade Média, até o séc. XX. Rabi Yehuda Aryeh de Modena (1571-1648), autoridade Haláchica do Renascimento Italiano, enfatizou: "As palavras dos Sábios devem ser entendidas de acordo com seu tempo, lugar e com o in-divíduo, pois de outro modo, estaremos negando sua palavras, exatamente como os Caraítas negam a Torá escrita, uma vez que não tem fim o número de coisas proibidas pelos Sábios que se tornaram permitidas quando os tempos e os lugares mudaram." Rabino Jacob Emden (1697-1776), importante autoridade Haláchica na Alemanha, fez uma afirmação semelhante: "...muitas Mitzvot tornam-se realidade em períodos diferentes da História Judaica - tanto permitindo o proibido, como proibindo o permitido. Assim é claro como o sol que os mandamentos dependem da época, das circunstâncias e das pessoas de cada geração. Elas não foram instauradas de uma vez só, num padrão completo e final, mas estão sujeitas a adições e modificações necessárias com as mudanças dos tempos." Mencionamos anteriormente que o Movimento Ortodoxo na Europa, reagindo ao Movimento Reformista, não permitiu que a Halachá se desenvolvesse de um modo natural. Na África do Norte, porém, não havia Movimento Reformista nem um Ortodoxo. Como resultado, no Marrocos e no Egito a Halachá não se tornou petrificada. Continuou a florescer nos séculos XIX e XX, e conseguiu lidar criativamente com os assuntos controvertidos dos tempos modernos. Por exemplo, no Egito, os Rabinos mostraram coragem e flexibilidade nos seus regulamentos Haláchicos até o séc. XX. Na esfera da tecnologia, Rafael Aharon ben Shimon, Rabino Chefe do Cairo de 1891 a 1921, permitia acender fósforos nos Dias Santificados - porque achava que o fogo já era existente, e assim, permitido, de acordo a Halachá. Ainda mais, permitia ligar o interruptor da luz elétrica num Dia Santificado. No campo do ritual, Eliahu Hazan, Rabino Chefe de Alexandria de 1833 a 1908, permitia recitar o Kidush, na Sinagoga, sexta-feira à noite, em contradição ao Shulchan-Aruch e ao costume Sefaradi baseado no princípio Talmúdico de que o Kidush só pode ser recitado no local onde a refeição é consumida. Quando ele percebeu que muitas pessoas não diziam o Kidush em suas casas, decidiu que era melhor que elas ouvissem o Kidush sem fazer a refeição, do que não ouvi-lo totalmente. Como mencionamos, os Rabinos Ortodoxos Europeus do séc. XIX proibiram a qualquer pessoa rezar na Sinagoga onde a mesa de orações não estivesse no centro. O Rabino ben Shimon ignorou essa proibição totalmente, embora muito ciente daquela opinião, e decretou que - se o ato de tirar a mesa de orações do lugar fosse facilitar os leitores da Torá, ou melhorar a aparência estética da Sinagoga, ele passava a ser permitido. No campo das relações matrimoniais, o problema das esposas abandonadas piorou drasticamente nos tempos modernos. Muitos jovens ocidentalizados no Egito não se consideravam comprometidos com a Lei Judaica, mas queriam viver com mulheres judias, muito mais tradicionais, as quais exigiam alguma espécie de cerimônia judaica. Assim um jovem fazia uma "cerimônia particular de casamento" na qual ele tomava a jovem na presença de duas testemunhas. Tempos depois, acontecia de ele sair de casa, e até do país, sem dar para a esposa o documento do Guet . Tecnicamente, uma Corte Jurídica Judaica tinha o poder de anular o casamento, permitindo, assim, às esposas abandonadas, um novo casamento. Do séc. XII, em diante, porém, os Sábios evitavam utilizar este dispositivo Haláchico. Porém em 1901, os três Rabinos Chefes do Egito - ben Shimon, Hazan e Aharon Mendel Hacohen - introduziram um decreto comunitário para anular qualquer casamento que não se realizasse: a) com a permissão do Presidente da Corte de Rabinos; b) na presença de um Minian que incluísse um representante da Corte Rabínica; c) com um contrato de noivado e casa-mento. Rabino ben Shimon atestou em 1908 que o propósito de tal decreto tinha sido obtido e o hábito de "cerimônias particulares de casamento", desapareceu. A abordagem geral dos Rabinos Egípcios sobre a Halachá está claramente refletida nas palavras do Rabino Eliahu Hazan. Escritas em 1874, anos antes da formação do Movimento Conservador nos Estados Unidos, elas têm muito em comum com o ponto de vista Haláchico deste Movimento: D'us não é um
ser humano, que muda, e poderia mudar Suas idéias com a passagem do tempo,
e violar leis justas e estatutos. ELE nos mostrou que Sua maravilhosa
Torá é eterna para todo o sempre; como em muitas gerações nações se elevaram
e depois caíram, muitas leis e estatutos foram mudados ou desapareceram
como fumaça - mas a Torá do D'us vivo é duradoura e sua memória perdurará
nos descendentes daqueles que a receberam. Nenhuma palavra de tudo o que
D'us falou para Moisés, Seu servo, no dia do Grande Encontro - perdeu
ou perderá o poder. Porém, uma vez que a Sagrada Torá foi dada aos mortais,
propensos a serem influenciados por mudanças com a passagem dos tempos
e de legisladores, decretos, natureza e clima, de cidades e países - por
esta razão todas as palavras da Torá foram com grande sabedoria dadas
sem definição clara Assim, vemos que o Movimento Conservativo caminha nas pegadas de Hillel e Raban Gamliel, dos Rabinos Modena e Emden, ben Shimon e Hazan. Diferente no Movimento Reformista, o Conservativo considera a Halachá obrigatória. Diferente da Ortodoxia, ele rejeita o slogan: "tudo que é novo é proibido pela Torá" e permite a Halachá mudar e se desenvolver de um modo natural e orgânico. Se o Movimento Conservativo precisa ter um moto que seja o do Rabino Abraham Isaac Kook - Rabino-Chefe durante o Mandato Britânico - sobre o território que hoje é Israel: "O novo será santificado e o sagrado, renovado".
|