|
|
|
||||
Parashá LECH LECHA |
Comentários O SACRIFÍCIO DE ISAAC GÊNESE, Capítulo 22, 1-19 1 - E após estas coisas o Deus experimentou a Abrahão.
E disse Eis-me; 1) Esta tradução procura reproduzir o texto bíblico
do modo mais literal possível.
A HISTÓRIA DE ABRAHÃO: A Françoise Dolto, autora de "O Evangelho à Luz
da Psicanálise",
Desde o princípio, ele acumula honrarias e vitórias, belas ações e empreendimentos bem sucedidos. Em toda a sua trajetória, Abrahão não comete uma única falha, um único pecado verdadeiramente digno desse nome. Sua alma é inteira, ele é absolutamente bom, absolutamente corajoso, absolutamente íntegro. Em termos psicopatológicos, é possível dizer que Abrahão surge na Torá como o único homem possuidor de uma saúde mental inabalada e inabalável. Ao longo de uma longa vida, não somos informados de nenhum gesto irrefletido, nenhum ato do qual se arrependesse ou do qual fosse acusado, nenhum impulso pré-edípico, nenhum objeto parcial, nenhuma imaturaidade, nenhuma intolerância, nenhum preconceito, nada, nada do que na vida de um ser humano comum é tão comum, e torna o ser humano tão humano. Na linguagem de Winnicott, Abrahão teria um self verdadeiro perfeitamente amadurecido, capaz de grande flexibilidade. Dotado de total preocupação para com o outro, mas também capaz de destruir quando inevitável. Um homem destituído de crueldade, mas também destituído de sentimentalismo. Um homem integrado, íntegro e inteiro, que brincava e ia à guerra, que sentia medo mas tinha muita coragem, capaz de suportar a culpa e responsabilizar-se por seus atos, um homem cheio de ternura e determinação, sensível ao extremo, mas inflexível quando preciso. Amava a tudo e a todos, e jamais foi arrogante, prepotente ou pretencioso. Mesmo a mentira lhe era possível, quando realmente necessária. Ao mesmo tempo que podia tolerar uma solidão quase absoluta, desenvolvia vínculos de incrível tenacidade, que resistiam ao tempo, à distância e às maiores frustrações. Winnicott atribui a um self verdadeiro desse tipo a capacidade de até mesmo morrer por sua verdade interna. Abrahão foi ainda mais longe: sentia-se capaz inclusive de matar. Em termos freudianos, aí temos um dos Complexos de Édipo mais bem resolvidos de toda a História: sem nenhum resquício de perversão, era um homem potente, no gozo pleno de sua força física e no total domínio de suas emoções. Terno, gentil e generoso, mas também forte, determinado e até duro, quando necessário. Mas nunca um tirano, mesmo quando poderia sê-lo. Forte contra os fortes, ardiloso contra os invencíveis, generoso com os iguais e bom com os subordinados e mais fracos. Amava inteiramente a sua família, inclusive àquela que deixou para trás: libertar-se e ir para longe não significaram, para ele, odiar e cortar vínculos. Aliás, Abrahão não odiou ninguém. Zangou-se várias vezes, mas nunca odiou. Ao contrário: procurou sempre ver o outro lado, colocar-se no lugar do outro para examinar se, afinal, nada havia nele de valioso. Perfeitamente capaz de defender seus direitos, no entanto reconhecia por inteiro uma situação desfavorável, e nunca lhe ocorreu expor-se onipotentemente a perigos demasiados. É possível dizer que Abrahão não era histérico, nem obsessivo, nem paranóide, e tampouco fóbico. Nenhum sintoma. Nenhuma patologia. Falando na linguagem kleiniana, vemos em Abrahão uma total superação tanto da fase esquizo-paranóide quanto, na medida em que isto é possível, da fase depressiva: ao morrer-lhe a esposa de toda a vida Abrahão viveu um luto total, como era de se esperar após um casamento tão longo, mas recuperou-se inteiramente, pois ainda encontrou vida dentro de si para casar de novo e gerar outros filhos. Abrahão não era voraz: muito ao contrário. De inveja não vemos nele nenhum sinal. Sua capacidade de reparação era imensa. Sua destrutividade estava tão fortemente a serviço do Ego, e não do Id, que somente com ele teria sido possível a experiência do sacrifício de Isaac: qualquer outro ser humano, confrontado com o mesmo desafio, teria se voltado contra Deus ou contra si próprio, matando a um ou a outro. Como ninguém mais, antes ou depois dele ao longo de toda a Bíblia, Abrahão era destituido de ansiedades ou angústias, cisões e comportamentos regressivos. Nem o mais ortodoxo dos psicanalistas kleinianos conseguiria encontrar o que interpretar em Abrahão. Foi um homem de uma normalidade verdadeiramente a-normal, inteiramente maduro, absolutamente integrado na realidade, e ainda assim inteiramente capaz de sonhos e esperanças. Até em termos lacanianos Abrahão era cheio de virtudes: a começar pelo abandono da casa paterna, quando funda um universo próprio, tornando-se criador da própria Lei e acatando-a inteiramente, passando pela troca do nome, em que ele ressignifica a própria identidade, até a castração simbólica (a circuncisão), que para ele teve o exato significado que Lacan lhe atribui: a abdicação da onipotência, da qual Abrahão revelou-se verdadeiramente isento. O fato de estar casado com uma meia irmã (por parte de pai) não caracterizava, naquela época, um incesto, o que só se daria se ela o fosse por parte de mãe. Abrahão não faz reivindicações pré-edípicas, não tem "points-de-capiton", não possui sintoma de neurose alguma. Sua obediência ao Pai era completa, mas não submissa. Complementando o diagnóstico freudo-lacaniano, Abrahão foi um homem sem inibições, sintomas ou angústias. (Ao menos, segundo os comentaristas da Bíblia, até imediatamente antes de passar pela experiência traumática do Sacrifício.) Aliás, a relação de Abrahão com Deus (que em termos psicanalíticos seria visto como um Pai absoluto) é absolutamente espantosa: por um lado, obediência total, quando não havia outra coisa a fazer. Mas sempre que possível, sua reação era questionadora, não submissa, até irreverente, em certa ocasião, quando lhe pareceu que Deus estava exagerando... Por amor a esse Deus, um amor que só alguém como Kierkegaard conseguiria descrever de modo adequado, Abrahão dispôs-se a matar seus próprios filhos, os seres que ele mais amava. Ao primeiro, expôs à morte no deserto, e ao segundo quase matou com suas próprias mãos. Mas quando esse Deus lhe pareceu injusto, não ficou submissamente calado: discutiu, questionou, argumentou, com respeito filial mas com total firmeza de caráter. Em suma, é-se obrigado a reconhecer: Abrahão foi um homem perfeito. Na verdade, foi O homem perfeito, já que a Bíblia não nos conta de nenhum outro, talvez à excessão de Job, que no entanto parece muito mais um personagem que uma pessoa de carne e osso. (De fato, Marion Milner, na espantosa análise que faz das ilustrações de William Blake para o livro de Job, confirma inteiramente esta hipótese.) Abrahão não era um personagem de ficção: ao menos, não o parece. Algumas de suas atitudes são demasiado humanas para poderem ter sido inventadas por terceiros (o episódio das ovelhas dadas a Avimelech para obrigá-lo a reconhecer o roubo do poço, o fato de o anjo- peregrino haver omitido parte do que disse Sara, para que Abrahão não ficasse deprimido, etc.) Por isso, é preciso prestar muita atenção à total perfeição que ele demonstra possuir: ele foi um homem excepcional, e não apenas um modelo. Politicamente, Abrahão foi o revolucionário mais democrático da História: discordando das práticas em sua sociedade, deixou-a em paz e foi fundar uma outra. Isto porque ele não estava interessado em questionar as estruturas do poder, ou suas manifestações aparentes: Abrahão tinha por objetivo questionar as bases metapsicológicas do poder total, emanado da fantasia humana de completude e onipotência, e não o poder como exercício da autoridade socialmente instituída. Obviamente, Abrahão não inventou a democracia, e muito menos a anarquia. Mas no mundo em que ele vivia, a democracia (para não falar da anarquia) seria um objetivo ainda mais utópico e quimérico do que é hoje. Seria impossível afirmar que ele tenha inventado a Lei em si mesma. Hamurabi o antecedeu em dois ou três séculos. Mas Abrahão inventou algo absolutamente revolucionário. Tão revolucionário, que até hoje a humanidade ainda não aprendeu a usar esse invento: o princípio da não-onipotência do governante. Em outras palavras, é possível dizer que Abrahão teria sido o primeiro homem (registrado pela História) a pensar na idéia de que aquele que detém o poder não o detém por inteiro: Está limitado em seus atos tanto pela lei quanto pela consideração devida aos seus subordinádos. Sabemos perfeitamente que, até hoje, poucos são aqueles que verdadeiramente abriram mão do poder total, aí inculídos tanto os governantes quanto os governados. Poucos são os detentores de algum poder que não busquem aumentá-lo e usá-lo ao máximo. Diz a Psicanálise que isto faz parte da Natureza Humana. Não da Natureza Humana total, mas de uma de suas facetas inevitáveis, a infância. Abrahão tinha outra proposta política: ao detentor do poder, cabe usá-lo ao mínimo imprescindível. Não deve prevalecer-se dele, nem utilizá-lo em demasia sobre os que o possuem em menor escala. Em outras palavras: Abrahão rompeu com a Lei do Mais Forte! Foi em nome deste princípio, um princípio absolutamente básico na Torá, o princípio segundo o qual o respeito pelos mais fracos deve tomar o lugar da Lei do Mais Forte, que Abrahão aceitou as humilhações, derrotas e perdas, em uma palavra - as feridas narcísicas a que se viu exposto. A primeira ferida narcísica foi a separação de Lot, seu sobrinho, seu mais próximo parente próximo, o único membro de sua família que aceitou acompanhá-lo em sua viagem pela Terra e pela História. O restante da família ficou em Haran, ou seja, continuou com suas práticas tradicionais, ainda que já aceitasse a existência de um Deus supremo que Abrahão teria idealizado quando ainda lá vivia. Lot, filho de seu irmão, foi para o ocidente com ele, e com ele aprendeu a pensar desta nova maneira, a pensar na generosidade e não na cobiça, a pensar na justiça e não na força, a pensar nas necessidades do outro e não só no próprio prazer. Mas o relacionamento com esse único membro da sua família que reconhecia a justeza de suas formulações acabou fracassando, pois a voracidade de Lot não havia sido elaborada no mesmo grau que a dele, e eles tiveram que se separar. A longa descrição desta separação, confrontada com a concisão habitual do texto bíblico, demonstra o quanto ela foi significativa, e portanto dolorosa. Vemos aí Abrahão, que certamente esperava de Lot apoio integral a suas propostas, reconhecendo um primeiro fracasso. A segunda ferida ocorreu no Egito, onde a beleza de Sara impressionou os funcionários do Faraó, que se apressaram a levá-la ao Palácio. A idéia de que, se ficasse claro que Sara era sua esposa, Abrahão seria sumariamente eliminado, é colocada pelo texto bíblico com tanta simplicidade, com tanta objetividade e rapidez, com tal ausência de surpresa, que somos levados a crer que, naquele contexto, isto realmente não era nada surpreendente. Afinal, se o Rei quer, o Rei toma, e ponto final. Como é diferente esse modelo de poder daquele proposto por Abrahão, quando diz aos quatro reis derrotados, cujos bens e cujos súditos ele resgatou das mãos dos cinco reis vitoriosos, e que lhe ofereceram ficar com todos os despojos, devolvendo-lhes apenas os prisioneiros, que ele lhes irá devolver desde "um fio até um cadarço de sapato", pois não pretende enriquecer com bens roubados na pilhagem! Abrahão estava ali numa posição de força total, perfeitamente reconhecida por seus interlocutores. Estes lhe oferecem os despojos, atestando seu direito legal aos mesmos (em termos das leis vigentes até então). E Abrahão diz algo como "Não, muito obrigado, o que não me pertencia legitimamente, não me pertencerá agora por um ato de força." Por outro lado, vemos no episódio do Egito também a história de uma sexualidade desenfreada, para a qual é legítimo matar a fim de satisfazer um desejo, contra uma sexualidade amadurecida e elaborada, para a qual é possível sofrer uma grave derrota e ainda assim continuar viva. Fosse Abrahão menos inteiro, menos maduro, e certamente teria preferido se deixar matar a continuar vivo com tamanha vergonha. Mas Abrahão havia superado a vergonha: ele estava propondo uma nova civilização, baseada na culpa e não mais na vergonha. Podemos conceber a vergonha como característica de um tempo muito especial no desenvolvimento infantil, a meio caminho entre a fase esquizo-paranóide e a fase pré-depressiva, onde o Ego-Ideal ainda é o modelo dominante, mas o Ideal de Ego já começou, com sua rendição à alteridade, a admitir a impossibilidade da utopia narcísica. Nessa fase, a dependência já seria um fato consciente, a ponto de a pessoa de quem se depende adquirir uma importância vital para o dependente. No entanto, ainda resistem ao desaparecimento as fantasias da plenitude, mesmo que agora essa plenitude já se veja possível apenas sob o "patrocínio" da pessoa de quem se depende, e a quem se idealiza - a pessoa que serve de modelo para o Ideal do Ego. Esse momento "a meio caminho" pressupõe, então, um estágio de desenvolvimento já não inteiramente primitivo. Já existe uma integração mental suficiente para perceber o outro como um inteiro. Mas não existe ainda um reconhecimento pleno da falta fundamental. Se já não há mais o sonho narcísico da completude SEM o outro, o sonho ainda narcísico da completude com o auxílio do outro ainda perdura, e é neste momento que se torna mortífera a idéia de desagradar a esse outro, decepcioná-lo, perder o valor diante dele, talvez, como diria Lacan, perder a condição de Falo desse outro maravilhoso, percebido como doador onipotente do Bem Absoluto, e por este motivo exercendo um poder supremo sobre aquele que dele depende e dele espera receber esse Bem Absoluto. É somente com a elaboração deste novo patamar narcísico que se pode falar definitivamente de um reconhecimento do outro, pois até então o outro ainda é excessivamente dotado de qualidades mágicas: não é ainda um ser humano. Aqui, talvez, cabe localizar a vergonha, nesse lugar onde já é necessário agradar, mas ainda não há como acreditar num amor humano, tolerante e falível. No jogo do Absoluto, ao Bem Supremo contrapõe-se o Mal Total, e ao amor absoluto contrapõe-se o desprezo eterno. Falhar para com o Objeto Maravilhoso é, pois, fatal. Abrahão está, no entanto, adiante, já superou esta fase. Ele não é homem por identificação com um Homem Maravilhoso e Infalível. Não lhe necessário, pois, medir-se com um Modelo Ideal, e por isso destituir-se de qualquer valor ao se perceber não igual ao Modelo. A culpa surge de um novo desenvolvimento emocional, que se processa à medida em que o Objeto Desejado começa a tornar-se, cada vez mais, amado, amado no sentido mais adulto da palavra. Se até então o objeto idealizado é venerado e temido, agora ele passa a ser amado no sentido winnicottiano do concern, que é a capacidade de importar-se com o bem estar do outro. Do Objeto Maravilhoso não é necessário cuidar. Só é possível cuidar de um objeto que perde, gradativamente, as suas qualidades mágicas e onipotentes. O concern de Winnicott surge quando a mãe não mais é percebida como uma extensão da fantasia do bebê, e sim como um objeto externo, real (no sentido que Lacan dá ao termo). Na dinâmica do concern, a criança ama de uma forma doadora, ela não mais supõe que a mãe seja onipotente e inesgotável. Ela passa a conceber a mãe como um "bem perecível", do qual é preciso cuidar. Será por identificação projetiva? Será em razão do reconhecimento de sua exterioridade, como diz Winnicott, e portanto de sua qualidade supremamente ameaçadora de "perdível"? Se até então o laço afetivo era mágico, tido como indestrutível, e por isso catastrófico, quando rompido, dali para a frente, à medida que o concern se solidifica enquanto estruturante do psiquismo, o laço passa a ser percebido como algo construído deliberadamente pela criança, fazendo parte, portanto, de suas possiblidades. Característica deste estágio, pois, é a capacidade de realizar o luto pelo objeto perdido, não sendo mais necessário mergulhar na melancolia. Pois esta última pressupõe um objeto que é, pela natureza a ele atribuída, responsável pela existência do sujeito, enquanto que a capacidade para o luto implica num sujeito que existe por direito próprio, um eu capaz de sobre-viver à perda do objeto. E é desta forma que podemos explicar o comportamento de Abrahão: a possibilidade de perder Sarah para o Faraó (ou, mais tarde, para Abimeleque) não o faz "perder (também) a (própria) cabeça", como se diz. A perda será dolorosa a mais não poder (e não é à toa que Abrahão prefere perder o filho Ismael a perder o amor da esposa Sarah, mais tarde), mas não será fatal - ou psicotizante - como prova o casamento posterior de Abrahão, depois da morte de Sarah. Livre da vergonha, Abrahão também já está para além da melancolia. Mas isto não é tudo. Ainda um outro momento, o da quarta ferida narcísica, quando o governante Abimeleque apodera-se de Sara (novamente), apresentada por Abrahão como sendo sua irmã (novamente). Depois fica furioso por Abrahão lhe haver mentido e, com isto, induzido-o ao pecado. Abrahão comenta em resposta: "Pois pensei: Falta-me apenas que não haja temor a Deus neste lugar, e me matem por causa de minha mulher"! (tradução livre). Onde o soberano é soberano, e não obedece a soberano algum acima dele, a vida do subalterno está sempre por um fio. É sem dúvida contra isto que Abrahão se insurge. Deve-se notar que, neste episódio, Abrahão já não está tão certo de que ali o costume é o mesmo que no Egito. No Egito, quando a mesma coisa aconteceu, ele não fez nenhum comentário. Com Abimeleque ele não estava, aparentemente, em terra tão dominada pela onipotência a ponto de a dúvida a esse respeito parecer ociosa. Aqui ele expressa a dúvida, e de fato já havia nessa outra sociedade alguma consciência da autoridade de um Deus Supremo, tanto que nos é contado o sonho de Abimeleque em que Deus lhe aparece e o adverte para não tocar em Sara. Psicologicamente falando, é possível ver em Abimeleque um personagem a quem a divindade fazedora de leis, à qual até o Rei está submetido, já estava se tornando familiar. (É sintomático que, no texto bíblico, a intervenção do Deus - com o objetivo de impedir que o Faraó tocasse em Sara - se desse através do corpo, por meio de uma doença física, e não por palavras, em meio a um sonho, como aconteceu com Avimelech.) Ou seja: Avimelech seria um homem a meio caminho entre dois estágios diferentes de desenvolvimento emocional: entre a ruthlessness e o concern, como diria Winnicott, ou entre a posição esquizo-paranóide e a posição depressiva, na linguagem de M. Klein. De qualquer modo, para Abrahão este episódio se constituíu em mais um confronto doloroso com as forças desintegradoras da fase esquizo-paranóide, com suas pulsões parciais e seus elementos destrutivos. Mas é um encontro elucidativo (por contraste com o ocorrido no Egito) dos modelos vigentes nas várias sociedades de então: a do Faraó, inteiramente mergulhada na onipotência e no narcisismo - e veremos como, posteriormente, o Êxodo do Egito se caracteriza claramente como uma luta contra estas dimensões primitivas da psique humana - o reino de Abimeleque, em pleno processo de passagem da ruthlessness para o concern, e essa nova sociedade que Abrahão deseja fundar, baseada no concern e em nada mais. A terceira ferida, por ordem cronológica, ocorre quando, após o nascimento de Isaac, Sara não mais tolera a presença de Hagar, a serva, e seu filho Ismael, e exige de Abrahão que expulse os dois. Para Abrahão, não se tratou de expulsar apenas Hagar, por quem ele aparentemente nutria compaixão, mas não amor. Tratava-se, isto sim, de mandar embora seu filho Ismael, ao qual, com certeza, ele amava. Depois de perder Lot, e de perder Sara mesmo que por poucos dias - e a quem ele perderia de novo algum tempo depois - Abrahão perde Ismael. Não é preciso alongar-se nas explicações sobre esta nova dor. Ismael era um filho desejado e legítimo, não um bastardo gerado por uma escrava que por acaso engravidou. Era um tanto selvagem, portanto pouco dado à reflexão, mas era amado. Foi com ele que Abrahão inaugurou o ritual da circuncisão. Não fosse a imposição ofendida de Sara, que aparentemente não suportou a fantasia de que Ismael, mais velho e mais forte, viesse no futuro a dominar Isaac, aquele teria tido um status igual ao deste. Podemos compreender, no entanto, que Ismael teria sido um mau herdeiro para um homem que procurava implantar o paradigma da ética e da generosidade, em substituição ao paradigma da força. Ainda assim, a perda de Ismael pesa sobre Abrahão e lhe dói profundamente. (Situação semelhante, pelos mesmos motivos, ocorre quando Rebeca faz com que o velho Isaac dê a primogenitura a Jacob, o tranqüilo "habitante das tendas", tirando-a de Esaú, o selvagem caçador das florestas.) Caberia, de passagem, refletir por um momento sobre a insistência com que o texto bíblico procura, sempre que possível, incutir no elemento masculino (yang) um toque feminino (yin), ao mesmo tempo que atribui ao feminino uma ponta de capacidade de ação (yang), aparentemente concordando com a visão oriental de que o excessivamente yang e o excessivamente yin desequilibram o universo (a Criação, diria a filosofia judaica). No último e mais famoso episódio da história de Abrahão, durante três longos dias o patriarca convive com a perda de Isaac, a quem ele irá matar com suas próprias mãos, como sacrifício para esse mesmo Deus que lhe havia ensinado a lei suprema, a lei humana por excelência: a lei que deveria revogar a lei natural da predominância do mais forte. Tão firme é a sua crença no princípio de que a Justiça (leia-se Deus) deveria ser mais forte que a Força, que ele aceita, em nome dele, matar até mesmo a seu único herdeiro, que nesta condição, era mais que apenas um filho. Apesar de, assim, incorrer em contradição total. No entanto, era-lhe mais valioso submeter-se ao princípio geral da justiça, que evitar um ato de força específico e, em troca, renegar o princípio geral. Sei que, com estas considerações, não está esgotado o mistério desse episódio, um dos mais dramáticos de toda a Bíblia. Talvez seja impossível esgotá-lo. Quero apenas enfatizar um ponto que me parece central, e que integra a narrativa do sacrifício de Isaac ao restante da história de Abrahão. Trata-se da questão do narcisismo. Considerando-se a Bíblia (e, neste momento, incluo também o Novo Testamento) como um longo (e não inteiramente bem sucedido) esforço para humanizar o homem, para educá-lo, para reprimir sua onipotência, num sentido eminentemente freudiano - já que não havia outra saída, a da elaboração, e não a haveria, por alguns milênios - para tirá-lo (à força, se necessário) da condição de criança pré-edípica, que quando quer exige, que quando não quer destrói, que não tolera nada que sua vontade não reivindique, podemos ver em Abrahão uma espécie de modelo do homem ideal. Repito: a mim não parece que Abrahão tenha sido "inventado" para servir de modelo. Não consigo acreditar que algum antigo escritor teria conseguido criar um personagem tão surpreendentemente real e concreto. Só muito recentemente a literatura - depois de séculos de treinamento - conseguiu criar personagens tão "de carne e osso", que dão a impressão de que seriam seres humanos reais. A riqueza de detalhes inúteis é demasiada para que um ou vários escritores o houvessem imaginado. É possível que o intúito educador dos legisladores bíblicos tenha acrescentado a uma narrativa original alguns elementos intencionalmente fabricados. Mas, lendo toda a narrativa, é difícil acreditar que Abrahão tivesse sido apenas um "personagem de ficção". Ao menos, é essa a minha opinião. Pois bem: nessa condição de homem real, de ser de carne e osso, Abrahão era perfeito. Era tudo que um homem absolutamente humano, e saudável, e maduro, poderia ser. Estava absolutamente afastado da violência natural, da ausência de piedade natural, da mais do que natural ausência de limites, etc. A Bíblia Hebraica lhe atribui e a mais ninguém - uma personalidade digna de total admiração. No entanto, mesmo esse homem perfeito, esse ser humano sem mancha e sem remorso, sofre cinco feridas narcísicas profundas, algumas delas esmagadoras. Cinco perdas extremamente dolorosas, a que podemos perfeitamente chamar de traumáticas. Cinco traumas dos mais violentos. Já sabemos que Abrahão não se deixa abalar em suas convicções. Sua crença na Justiça como ideal não é alterada nem mesmo após o pior dos traumas. Sua determinação em tornar-se imune às seduções da Força persiste até o fim. Seu caráter não se abala. Ele não perde a confiança nesse Deus tão humanizador, por um lado, mas tão espantosamente destituido de piedade, por outro. Qualquer outro teria mandado esse Deus às favas, com sua crítica à onipotência e suas promessas de um grande futuro. Mas, a meu ver, para Abrahão o princípio da Justiça acima da Força era precioso demais. A idéia de uma humanidade amadurecida, dotada de limites internos, livre da psicopatia, onde um homem não precisasse temer a um outro mais forte que ele, essa idéia lhe era cara demais, e por ela ele se dispôs a sacrificar até mesmo seu mais precioso bem: o filho-herdeiro que levaria adiante sua herança, sua idéia. Se não pretendo basear minha reflexão na crença, e sim na Psicologia, posso imaginar que Abrahão se auto-impôs essa prova, para testar o seu próprio poder de defender suas idéias. Se ele projetava a fonte de suas próprias idéias num Ser fora dele, não fazia mais do que fazia todo o resto da Humanidade de então. Mas as idéias que ele projetava nesse ser supremo, para ficarmos com a teoria antropocêntrica em vez de com a teoria teocêntrica, eram diferentes daquelas projetadas pelos demais. Como prova decisiva do que procurei demonstrar, os povos cristãos, islâmicos e judeu estão aí, espalhados pelo planeta como as estrelas do céu e as areias à beira mar, de um modo ou de outro submetidos à idéia de que o Deus de Abrahão tinha lá suas virtudes. Aqui está, pois, minha contribuição pessoal a tudo quanto já se disse de Abrahão. Em minha opinião, a história de Abrahão, tal como o seriam outras histórias do mesmo gênero, dessas que iluminam o caminho da Humanidade a partir de elementos profundamente ocultos no mais obscuro dos poços sem fundo - o inconsciente - tem o valor exato de uma espantosa INTERPRETAÇÃO PSICANALÍTICA. Podemos atribuir à história de Abrahão a mesma função que a daquelas frases pronunciadas pelos psicanalistas, e que se destinam a lançar luz sobre um aspecto inconsciente que, por estar oculto, exerce um poder sem contestação sobre o Eu do paciente. A interpretação se destina, basicamente, a desmontar mecanismos que, por funcionarem fora da consciência, a dominam sem que esta possa sequer protestar, ainda que muitas vezes não goste dos resultados. Tais mecanismos são de várias naturezas, e não cabe aqui discutir esta questão. Em termos bastante precisos, porém, vejo na história de Abrahão, com ênfase especial para o episódio do Sacrifício de Isaac, o poder de sintetizar tanto a situação interpretada quanto a interpretação adequada a ela. A situação interpretada é a fantasia humana, demasiado humana, da onipotência, mãe da perfeição, tia da intolerância, e avó da prepotência. Abrahão era um homem perfeito. Abrahão foi o homem que enfrentou sozinho toda a cultura de sua época, a humanidade inteira, digamos assim, e a quem nada, nem a derrota, nem a humilhação, nem a dor e nem mesmo a vitória conseguiram dobrar. A frase "todos os homens têm o seu preço", que em maior ou menor medida se aplica a todos os outros personagens da Bíblia, não se aplica a Abrahão. Só após reconhecida esta característica essencial desse homem - e os religiosos, judeus ou não, a reconhecem sem nenhuma dúvida - é que se explica porque essa minha idéia de INTERPRETAÇÃO. É que Abrahão encarna, como nenhum outro homem bíblico, aí incluído mesmo Moisés, a fantasia humana da perfeição. Não de uma perfeição sobre- humana, é preciso que se diga, pois os super-homens nunca choram nem são jamais derrotados. Abrahão não é, de maneira alguma, um super-homem. Mas por isso mesmo é um homem perfeito. E por isso mesmo, sua perfeição é tantas vezes derrotada, humilhada, destroçada. O mais belo de todos os seres humanos revela- se, afinal de contas, tão ou mais sofrido quanto qualquer um de nós. Ele foi um homem feliz, sem dúvida alguma. Mas não porque lhe foi dada a felicidade dos anjos, a quem nada falta, que nada perdem, que jamais sofrem. Abrahão foi um homem feliz apesar de haver sofrido, não porque não sofreu. Pois sua inteireza era suficiente para abarcar todos os sofrimentos. Sua espontaneidade era suficiente para que não precisasse guardar rancor. Estava em paz com sua consciência, apesar de não ser imune à culpa. Não aspirava a nenhuma grandeza pessoal, apesar de estar plenamente consciente da importância de sua mensagem. Apesar de suas convicções, era destituído de vaidades. E, apesar de sua perfeição, jamais se poderia dizer que ele foi um "narcisista". Por tudo isto, ele viveu feliz e morreu feliz. Narcisista é a pessoa que, ao invés de investir sua libido (energia desejante) em pessoas do mundo externo, investe-a em si mesma ou em imagens do seu mundo interno. Algumas vezes o faz porque sofreu um desrespeito demasiado em seus primeiros anos, e passa o resto da vida lambendo as feridas e tentando recuperar o bem estar perdido. Em outras, porque não foi adequadamente socializada, isto é, não recebeu limites da mesma pessoa que lhe garantia a vida, e por isso passa o resto da vida tentando recriar o paraíso que "a vida (ou "o outro") lhe roubou". E em outras situações, ainda, pessoas que chegaram a desenvolver um certo "equipamento social" o perdem, porque o contexto em que vivem se torna, ele mesmo, anti-social, e portanto demasiadamente ameaçador. Nestas condições, a pessoa "recua" sua libido e seus investimentos no grupo social e os reaplica em si mesma, num claro movimento que rompe com a generosidade e resgata aquela avareza típica dos anos de pré-socialização (a fase em que a criança não suporta ver uma outra mexendo em seus brinquedos...) A este respeito, ver "Narcisismo em Tempos Sombrios", de Jurandir Freire Costa, e "Pacto Edípico e Pacto Social", de Hélio Pellegrino. Este último sentido de narcisismo é, portanto, uma espécie de sinônimo mais sofisticado do velho e obsoleto "egoísmo". Refiro-me simultaneamente aos três sentidos, quando proponho a idéia de que Abrahão era destituído de "narcisismo". No entanto, aí está a INTERPRETAÇÃO: nem mesmo Abrahão, o mais perfeito, o mais íntegro, o mais inteiro, o mais tudo que se possa imaginar de bom, ficou imune ao que, em psicanálise, chamamos de "ferida narcísica". A "ferida narcísica" descreve um golpe ao orgulho, uma diminuição à auto-estima, uma limitação ao Ego-Ideal. No sentido positivo, ela provoca uma perda à fantasia de onipotência. Neste sentido, a ferida narcísica faz crescer. No sentido negativo, a ferida narcísica provoca uma humilhação, à qual a pessoa reage recuando ainda mais, e assim tornando-se, contra-producentemente, ainda mais narcísica. O que determina o caráter positivo ou negativo da ferida narcísica talvez seja o estágio de desenvolvimento emocional em que se encontra aquele que a sofre. Se a pessoa não se encontra em condições de viver a ferida positivamente, sendo então levada ao crescimento, ela a viverá negativamente, e teremos uma regressão. (Muito cuidado, portanto, com os neuróticos à sua volta. Se você não tem certeza de estar diante de uma situação em que a ferida narcísica fará crescer, é melhor não provocá-la, pois as conseqüências de um gesto inadequado podem ser funestas. Na dúvida, chame um psicanalista). Fica claro, então, por que e de que modo me parece que Abrahão sofreu, nos cinco eventos acima descritos, verdadeiras (e positivas) feridas narcísicas. Nas duas vezes em que Sara lhe foi tirada, Abrahão certamente registrou a humilhação. Apesar de sair carregado de presentes do Egito, e de haver criado com Avimelech, em conseqüência do segundo episódio, um clima de aliança permanente, é óbvio que os dois momentos feriram profundamente sua alma, pois isto fica mais do que implícito no texto. Dada a descrição um tanto minuciosa que o livro faz do relacionamento entre Abrahão e Sara, e percebendo-se o profundo respeito que ele nutria por ela, e a importância que ele lhe atribuía, a ponto de, por exemplo, esconder-lhe que iria sair com Isaac para uma viagem da qual este não regressaria, podemos depreender que o lugar de Sara na vida de Abrahão era mais do que central. Abrahão a amava inteiramente, mesmo sendo ela um tanto "normal", digamos assim: Sara não surge, no texto bíblico, como uma mulher tão madura e inteira quanto Abrahão. Nas duas vezes em que ela foi sequestrada é mais que razoável supor que Abrahão sofreu intensamente, e não só pela perda iminente, mas também em sua honra de marido e macho. Mas Abrahão estava acima do machismo e acima do ciúme. Recebê-la de volta (e, segundo a Torá, intocada) foi-lhe suficiente. Ainda assim, não po\demos eliminar a hipótese de que ocorreu, em cada ocasião, uma tremenda ferida narcísica, pela qual Abrahão foi obrigado a reconhecer sua impotência tanto para garantir por inteiro a permanência de Sara, quanto para enfrentar e vencer as forças que se lhe opunham. Abrahão, no entanto, recupera-se saudavelmente das feridas, pois nem perde a confiança em Sara, atribuindo a ela a fonte de sua dor, como costumam fazer as crianças pequenas quando se machucam, nem passando a sentir-se um verme esmagado pela derrota. Como vimos acima, é preciso estar num grau elevado de desenvolvimento para que a ferida não resulte em regressão, e sim em crescimento. Ao separar-se de Lot, produziu-se uma nova ferida: a separação de Lot representou um fracasso, e não só uma perda. E sabemos o quanto o fracasso é doloroso. Mas desse fracasso Abrahão também se refez inteiramente, pois era maduro demais para guardar rancor: quando Lot, por sua vez, é sequestrado pelos cinco reis que vencem os quatro outros dos quais Lot era aliado, Abrahão parte em seu socorro como um raio, sem um único instante de hesitação ou conflito. A perda de Hagar e Ismael já foi suficientemente comentada. Vale a pena ressaltar, apenas, que entre Abrahão e Ismael continuou a existir um laço afetivo forte, a ponto de Ismael ter comparecido, juntamente com Isaac, aos funerais de Sara (!) e posteriormente aos de seu pai Abrahão. Isto certamente indica que depois da expulsão de Hagar (motivada por Sara, é bom lembrar), Abrahão e Ismael voltaram a se encontrar e restabeleceram, se não a convivência, ao menos a ligação. E disto se depreende o quanto esta separação deve ter doído a Abrahão. Houve, nesse episódio, uma clara perda de autoridade e de poder por parte de Abrahão, pois foi por exigência de Sara (orientada, segundo o texto, por um anjo), que Abrahão, muito a contra-gosto, expulsou Hagar e Ismael de seu acampamento, para uma possível morte no deserto circundante. A humilhação, aqui, foi tríplice: enquanto pai, enquanto marido, e enquanto chefe de seu clã. No entanto, Abrahão se refez ainda esta vez, pois retomou o contato com Ismael, posteriormente, e não se encheu de ressentimento contra Sara, como faria qualquer homem "normal". No último desses eventos, o Sacrifício de Isaac, a todas essas humilhações somou-se uma a mais: a de se perceber colocado na condição de puro e simples criminoso. Kierkegaard discute, de forma extremamente sofisticada e elegante, esta questão em seu livro "Temor e Tremor": estaria realmente Abrahão cometendo um crime, ou, por estar ele "em contato absoluto com o Absoluto", na verdade ele se encontrava naquele momento acima do bem e do mal, acima da Lei, já que seguia uma ordem direta do Autor da Lei? A meu ver, é mais fácil e direto imaginar que Abrahão, um homem, ainda que não um homem comum, carregou consigo, ao longo dos três dias que durou a caminhada até o local do sacrifício, o peso mortal de sentir-se criminoso. Sim, um criminoso total. Imagino Abrahão, naqueles momentos, sofrendo não só a dor da perda iminente, mas acima de tudo a culpa monumental, a culpa dilacerante, que só alguém inteiramente sensível e capaz de sentir-se culpado quando inflige um mal a outrem pode sentir. É mais um momento em que me ocorre enfatizar a espantosa maturidade de Abrahão, pois houvesse nele um mínimo daquilo que chamamos em Psicanálise de "auto-referência", não teria respondido à pergunta de Isaac - "Onde está o cordeiro para o sacrifíco, meu pai?" - da forma como respondeu: "O Senhor verá para si o cordeiro, meu filho". Esta é uma resposta cheia de dor, e é possível ouvir as lágrimas contidas humedecendo a voz de Abrahão, esse homem que, em outras ocasiões, era tão articulado, tão capaz de encontrar a palavra certa no momento exato. Aqui não: Abrahão está com a voz inequivocamente embargada. Ele se demonstra profundamente inseguro, ainda que determinado a cumprir sua missão: a insegurança não era motivada pela missão em si, pois a esta ele realmente levou até o fim, mas pela enorme culpa que ele não podia deixar de sentir. Abrahão não era "remplis de soi meme" a ponto de, tendo um objetivo tão importante a cumprir, esquecer-se da dor que iria provocar. Assim, terminamos de ler a narrativa do Sacrifíco de Isaac com uma profunda ferida narcísica em nós mesmos. A história de Abrahão, tal como nos é contada pela Torá, tem a meu ver a intenção de provocar, nos que a lêem, a profunda impressão, não necessariamente consciente, de que a perfeição humana é definiticamente impossível. De que a onipotência não faz parte dos destinos do homem, e de que mesmo um ser de todo perfeito não tem em seu poder o poder de poder tudo. Nem o poder de evitar todos os sofrimentos. A nós, leitores mortais, Abrahão deixa o amargo sabor da VITÓRIA DO HUMANO e da DERROTA DO FANTÁSTICO. Abrahão, com sua dor e suas perdas, inaugurou uma nova humanidade, uma humanidade em que o homem sofria e perdia não porque era INFERIOR e MAU, ou destituido de poder, mas porque era HUMANO. Portanto, a ninguém é dado aspirar à "felicidade sem dor", a ninguém, nem mesmo aos mais poderosos potentados, nem aos santos, nem aos homens perfeitos. A perda, o limite, a dor, o Não!, longe de se constituirem em exceções que só afligem aos renegados pela sorte, são intrínsecos à humanidade do homem, e mesmo aqueles que jamais os "mereceriam" não puderam evitá-los. Obviamente, até hoje são poucas as pessoas que realmente compreenderam a história de Abrahão, e no entanto ela é praticamente a primeira história bíblica (as anteriores, de Adão, Caim e Abel, Noé, podemos tranquilamente localizar numa pré-história, muito mais mítica que social). Até hoje os seres humanos brigam e se debatem contra o seu destino de humanos, pois por motivos os mais diversos, não conseguiram sair da infância, onde a Lei de Abrahão ainda não vigora. Por isso, por um lado a infância é cheia de prazeres e irresponsabilidades, mas por outro é cheia de terrores e ameaças (que um adulto talvez não suportasse sem enlouquecer). As crianças que não crescem continuam sujeitas a esses terrores, pois o bem onipotente que elas almejam se reflete, como num espelho implacável, na onipotência do mal que elas tanto temem. As que crescem, para poderem fazê-lo, devem "matar a criança
dentro de si", como diz Serge Leclaire, e graças a essa ferida
narcísica despedem-se do narcisismo e da onipotência e se
tornam adultos. Para não gerar malentendidos, é bom acrescentar
que, aqui, fala-se de um "matar" simbólico. "Matar",
aqui, tem o sentido de "destronar", destituir do poder. Digo
isto porque, obviamente, a Psicanálise considera que quando em
alguma pessoa essa "morte da criança" foi real, tem-se
uma grave doença. E no entanto, ainda assim é preciso "matar"
a criança dentro de nós, para não sermos governados
por ela. Se a Abrahão ocorreu, num primeiro momento histórico, que a onipotência é um mal em si, e que deve ser evitada a todo custo, talvez tenha ocorrido a ele a necessidade de "interpretar" a si próprio, abrindo mão até mesmo do filho que, "Este sim, irá completar a minha obra". Abrahão deixa claro, então, que a nenhum pai é dado matar o seu filho, pois de fato ele não o consegue, apesar de absolutamente determinado a tanto. Pela mesma razão, também não é do seu direito condicionar inteiramente a vida do filho aos seus próprios projetos. Foi para isso que esse filho lhe havia sido dado: para que ele tivesse um herdeiro. Mas Abrahão, quem sabe o primeiro verdadeiro adulto da História (e, cá entre nós, quem sabe ainda hoje o único) não podia ceder à tentação da onipotência e fazer do filho um mero instrumento de sua obra pessoal. O quase assassinato de Isaac representa então uma quíntupla ferida narcísica: a perda do filho amado, a dor do pai orgulhoso, a dor do chefe que interrompe sua linhagem, a humilhação do marido que tem de esconder-se da mulher, a culpa imensa pelo ato criminoso, e a última e mais importante de todas - a ferida narcísica definitiva, a que consiste em abdicar da completude imaginária que lhe poderia advir através do filho, caso este vivesse para realizar os ideais do pai. (É interessante lembrar que, mais tarde, tentando garantir que Isaac permaneceria fiel à sua herança, Abrahão envia seu servo Eliezer a Harán com a missão de lá, entre os seus parentes, escolher uma mulher para o filho. Com isso, Abrahão deixa claro que não gostaria de ver Isaac arrastado para as práticas sociais canaanitas. Quando, porém, Eliezer lhe pergunta o que fazer caso nenhuma filha de seus parentes quisesse seguí-lo para casar-se com Isaac, Abrahão diz a Eliezer para desistir do projeto e voltar para casa. Fica claro que Abrahão não pretendia alcançar seus objetivos a qualquer preço). Tudo isto está como que embutido na narrativa bíblica pela qual tanto os judeus quanto os cristãos e os muçulmanos são apresentados ao seu ancestral comum. Portanto, nossa história começa assim, com esse episódio enormemente humano e enriquecedor. Não somos filhos de um herói mitológico e mágico. Somos filhos de um pai que soube conter seu narcisismo e sua onipotência infantil, de tão tristes conseqüências na vida adulta. (O livro de Kafka "Cartas a Meu Pai", por exemplo, é um ótimo testemunho para ilustrar esta questão). Somos filhos de um pai que, apesar de ter a faca em sua mão, soube controlar-se e deixar seu filho viver, por haver percebido que não eram suas as leis, e por isso não lhe cabia o poder total. Abrahão "inventa", pois, a castração freudiana e lacaniana, a depressão de Klein e o concern de Winnicott. É possível dizer, portanto, que do ponto de vista psicanalítico, a História desta parte da humanidade teve o melhor começo possível. Cabe esperar, com fervor, que não ocorra em algum momento um catastrófico desperdício. Amém! |