ROSH HASHANÁ 5778 - Prédica do Rabino


RESGATE DO FUTURO

Ha-Yom Harat Olam, hoje o Mundo foi Criado.

Esta frase não tem nada a ver com o Criacionismo que é uma regressão a tempos de trevas, rejeitando por dogmas religiosos os conceitos de processos biológicos, de evolução, ou mesmo da ciência como um todo.

A tradição judaica nunca propôs que a Torá explicasse a Terra, nem que explicasse os Céus, diga-se de passagem, mas tão somente falar do encontro e da intercessão entre os dois...

Sobre o que de celestial existe no humano e sobre o que de terreno, mundano existe no humano. Trazer o intangível e o transcendente para realidade do mundo é o gran finale da Criação, clímax da celebração de produzir uma entidade que Lhe fosse Imagem e Semelhança e que pudesse refletir os Céus na Terra.

Então se não é da Cosmogênese que estamos falando, o que é Haiom Harat Olam?

Harat vem do verbo "gestar".... Não o aniversário, o nascimento, senão seria o yom leidat ha-olam, o dia do nascimento do Mundo.... mas o processo que leva ao nascimento, a concepção e a gravidez do Mundo.

E Olam, também não é exatamente Mundo, mas eternidade ou infinito, ou mesmo da raíz "helem", o oculto. Olam é o Infinito oculto.

Então podemos dizer que estamos NO DIA "Prenho de Eternidade" ou o "DIA Eternamente Grávido".

E o que é a Criação se não o reproduzir do Infinito no finito?

Mostrar a incrível diversidade em sua constante transformação que é esse mundo -- Ma rabu maasseicha Hashem -- Quão diverso e dinâmico é Teu Mundo Hashem -- do silício, ao riso da criança, a lagarta-borboleta, à aurora boreal...

Neste Dia o Mundo é fecundado de potencias e possibilidades e o som originário desta concepção ressoa pelo universo, como a Cabala Lurianica descreve, ecoa no Or Ein Sof, na energia eterna-infinita, .... energia não capturada por sonares, mas pela kol d'mama daka, pela voz suave e constante que ressoa depois do toque do Shofar. Neste silêncio-sussurro

a voz deste Dia, o som da Eternidade se faz ouvir.

Que melhor maneira haveria de falar da Criação, que outorgar-lhe o mérito de ser Eternamente grávida, constantemente formando e desformando criaturas, espécies, em dinâmicos ciclos que diversificam e transformam tudo, seja em forma ou essência?

O Shofar soa esta frase: O mundo continua Prenho! O tempo não passa, o tempo se fecunda para novas rodadas. Murmura Tshuva, o retorno a esse ponto seminal e fecundo de mais um ciclo. Fazer tshuva é em algum sentido perceber a fertilidade da vida e do tempo, da possibilidade de lactar do seio da vida, renovação e renascimento.

Curioso que a origem bíblica da palavra Harat venha de um problemático versículo de Jeremias --

Va-Tehí li mi imi krivi, Ve-rachma HARAT OLAM --

Porque não me matou no ventre? Antes tivesse sido minha mãe minha sepultura, e estaria ela perpetuamente grávida!

Nesse problemático versículo, pleno de angústia e desespero manifesto por um profeta que foi exposto ao lado destrutivo e decompositor das mudanças, aparece essa grande pergunta: porque da Criação?.... Porque não deixar neste estado de Eterna Latência, de Eterna incubação?

E não é assim a Terra-- nossa mãe maior e também nosso sepulcro? Porque nascermos ao invés de deixar-nos nesta gravidez que não se consuma, nesta eternidade não nascida?

É em resposta a isso que nossa tradição exalta este dia e a razão pela qual celebramos. O mundo não é uma gravidez estéril que não é profícua e não se efetiva. Ao contrário, irrompe a placenta do tempo germinando possibilidades e se faz Rosh Hashana.

O Infinito, ou talvez os Infinitos, vem à margem do tempo buscando acasalar e gerar Criação, produzindo futuros.

E esse é um lugar desafiador para nossa geração ou para este momento de nossa civilização. Vivemos numa época da metáfora do fim do futuro. Fim do futuro da profissão, da família, do Brasil e do mundo. Não conseguimos conceber futuros.

Já repararam que até poucas décadas nossas ficções científicas eram sobre como o mundo se desenvolveria? Jetsons, Tunel do Tempo e tantas outras séries e prospecções imaginavam o futuro com carros voadores, cozinhas que se autocozinhavam... Hoje, porém, nossas ficções são todas sobre destruição? Não Hayom, mas Hayom After, o Day After...

Quantas vezes já destruíram Nova Iorque e o Mundo para falar de nossa perda do futuro.

A Escatologia -- COISAS QUE VÃO ACONTECER NO FIM DO MUNDO -- representa uma forma espiritual não para falar de destruíção, mas em si do próprio futuro. O passado e o presente ficam soltos se não estão amarrados a um futuro eternamente grávido. Não o futuro eterno de um interminável vazio, mas, ao contrário, desta cadeia da qual fazemos parte e nos dá sentido.

Diz o Midrash Rabba, que

Shisha devarim kadmu le-vriat ha-Olam -- Seis coisas foram criadas antes do mundo, ou melhor, antes da Eternidade ter sido criada:

Ve-iesh me-em she nivrehu, ve-iesh me-em she alu le-Machshava lehibarot --

E algumas delas foram criadas, enquanto que outras passaram pelo pensamento em serem criadas:

Ha-tora ve-ha-kisse ha-kavod nivrehu, A Tora o Trono da Glória foram criados

Ha-avot ve-Israel ve-Beit Ha-Mikdash u-Shemo shel Ha-Mashiach, Alu be-machshava lehibarot,

Os patriarcas-matriarcas, Israel, o Templo e o Nome do Messias, estes passaram pelo pensamento de serem criados.

Esse incrível insight do Midrash revela que o Olam ao ser criado tinha fetos- ou fatos -- já encaminhados à priori. A potência de um mundo constantemente grávido não está no desalento de Jeremias, que se pergunta para que nascer? .... Para que perpetuar estes ciclos de criação? Porque não deixar tudo no eterno silêncio-sepulcro da latência?

Porque há um futuro, porque uma mulher não engravida apenas para um filho, mas ela é parte de um futuro que vêm do passado. Não somos soltos no tempo, ou perdidos no tempo como a desesperança nos faz imaginar.

O mundo de hoje sofre com o fim do futuro, provavelmente efeito colateral de nos considerarmos cada vez mais deuses, senhores do nosso destino pessoal e coletivo. Donos e prepotentes, podemos inventar tudo e reproduzir tudo, menos é claro, o desejo que nos Criou.

Como disse a um menino que fazia Bar Mitzva e que tinha prêmios na área de robótica: "o grande desafio, o impossível desafio, não é criar inteligência artificial, mas desejo artificial".

"Criou e pensou em Criar", ala be-machshava, não é uma razão, mas uma vontade. Somos frutos não de uma ordem, mas de um projeto, de um desejo.

Um sonho? Um delírio utópico (daria bom nome para restaurante!)? Não! Trata-se do ser humano que é Imagem e Semelhança, capaz de entender e se identificar com o conceito de desejo.

O desejo é uma amarra com o futuro, um futuro preso a origem e ao passado. Resgatar essa tensão com o vértice do futuro é o que faz ressurgir vínculo com este desejo inicial que fecundou o tempo.

Da Torá antes do tempo ao Messias no final da História, é que se estica um tempo que torna possível o Livre Arbítrio, as escolhas de um ser que julga e se julga.

HaYom Harat Olam -- Hoje se inicia a gestação de um novo tempo, na eternidade.

HaYom Iamid ba-Mishpat -- Hoje essa gestação se fertiliza pelo julgamento

HaYom teamtsenu -- Hoje é um dia de Coragem

HaYom tevarchenu -- Hoje é um dia de Bênção

HaYom Im Be-Kolo tishmahu -- Hoje é O Dia... se a Sua voz escutares...

Então perceberá nessa suave murmurante voz do passado, antecedida pela evocação do shofar, o tempo renovado, cheio de significado. Um tempo bom, não vazio, não cruel, prenho de si e do mundo... manifestação de uma vontade eternamente renovada, não de uma mãe Terra que olha seus filhos que um dia voltarão a ela... não como um ato sem sentido, sem futuro, um desperdício... mas sim, tal qual qualquer mãe olharia seu filho ... vendo nele a grandeza de algo fecundo....

tal qual não devemos olhar para nosso futuro sem essa grandeza... e muito menos para este ano que se inicia

Hayom tichtevenu le- Chaym tovim ...

Inscreve-nos neste projeto de futuro que é 5778!


PARASHÁ