Rebecca T. Alpert
No momento em que nasci, minha mãe ouviu um pássaro
gorjear no céu e assim deu-me o nome de Tsipora (10. Logo depois
ela morreu, ao dar à luz minha irmã, sua sétima filha
num período de 14 anos. Minha mãe previu que, como um pássaro,
eu purificaria sua casa (2) e que, eu voaria longe - para longe de meu
pai e de meu marido -, mas não viveu o suficiente para ver cumprida
sua profecia.
Quando eu era pequena aprendi sobre a Deusa com as mulheres de Midian.
Fui eu quem persuadiu meu pai, Jethro, a se desfazer de seus ídolos
e cultuar a Única. Meu pai encontrou verdade em minhas palavras,
mas passou ao ostracismo por causa delas. Ninguém mais falava com
ele , nenhum pastor queria cuidar de seu rebanho. Assim, minhas irmãs
e eu assumimos a tarefa de pastorear o rebanho de nosso pai(3).
Contavam-se muitas histórias sobre o poço onde dávamos
de beber ao rebanho. Achava-se que teria surgido à época
da criação do mundo. Aqui, dizia-se, minhas ancestrais Rebeca
e Raquel encontraram seus maridos(4). Foi por isso que não me surpreendi
quando, um dia, um misterioso estrangeiro apareceu no poço e ajudou
minhas irmãs e a mim, quando estávamos sendo insultadas
pelos outros pastores. Seu nome era Moshe. Ele era gentil, mas eu logo
percebi que era um homem estranho. Vestia roupas de príncipe egípcio
e, no entanto, não parecia à vontade dentro delas. Era como
se ele abrigasse um terrível segredo. Quando contei a meu pai sobre
Moshe, ele lhe ofereceu hospitalidade. Ao conhecê-lo, meu pai também
ficou assustado cm o ar perturbado de Moshe. E, como temia os egípcios
fez com que o jogassem num buraco para morrer. De alguma forma eu sabia
que havia algo de especial naquele homem ( apesar de seu silêncio
taciturno) e que devia salvá-lo. Induzi meu pai a me deixar ficar
em casa, convencendo-o de que precisava de alguém para administrá-la.
Assim, eu escapulia todos os dias até o buraco para dar de comer
a Moshe (5).
Porém, não o alimentava só com comida. Eu também
o fazia abri-se, sair de sua concha, conforme ia conhecendo sua raiva
e sua dor. Ele me disse que era um hebreu e que havia fugido para Midian
por ter matado um homem em defesa da justiça para seu povo. E eu
lhe ensinei os segredos da vida de pastor - como se cuida de um rebanho,
guiando e comandando, mas ao mesmo tempo cuidando de cada animal em separado,
conhecendo as alegrias e as dores de cada animal, conhecendo os que gostam
de um afago, os que gostam de ser escovados e aqueles que gostam de ser
deixados em paz para pastar. Mas para além de nossas vidas e do
trabalho, nós compartilhávamos da mesma paixão -
a dele, pelo Deus dos Hebreus, e a minha, pela Deusa de Midian. Ambos
entendíamos a voz de comando do Único, e sabíamos
que o culto a muitos deuses não nos falava ao coração.
Embora os chamássemos por nomes diferentes, entendíamos
que o deus do outro representava o mesmo único. Nós enxergamos
a alma um do outro e nos amamos.
Sete anos se passaram, mas chegou um dia que não pude mais suportar
seu cativeiro. Sugeri a meu pai que aquele homem, Moshe, ainda poderia
estar vivo. Papai mostrou-se incrédulo . Se ele estiver vivo, argumentei,
deve ser uma pessoa muito especial - merecedora de receber minha mão
em casamento. Papai concordou. Ao encontrar Moshe no poço, vivo,
ele consentiu em nosso casamento, mas sob uma condição:
a de que metade de nossos filhos deveria ser criada como midianitas e
a outra metade como hebreus (6). Moshe concordou e nos casamos. Engravidei
imediatamente, mas permaneci com a barriga pequena, de forma que ninguém
percebeu até eu dar à luz meu filho (7). Quando ele nasceu,
Moshe chamou-o de Gershom, marcando-o como estrangeiro (8). Ele foi criado
dentro dos costumes de Midian e iniciado nos ritos da Deusa. Não
foi circundado e nem informado acerca da sua herança como hebreu.
Moshe continuou como pastor em Midiam por mais alguns anos. Sempre que
podia, eu ia com ele cuidar dos rebanhos. Lembro-me daqueles tempos com
muita alegria. Compartilhávamos de tanta coisa - nosso trabalho,
nosso filho, os belos pastos. Entretanto, Moshe ainda se mantinha taciturno,
separado de sua família e de seu povo. Ele nunca tornou-se um midianita
de coração. Fiquei grávida de novo. No dia em que
começou meu trabalho de parto, Moshe chegou em casa visivelmente
alterado. Enquanto eu dava à luz o segundo filho, contou-me que
também ele havia dado à luz naquele dia. Seu Deus falara
com ele, através de um arbusto, exortando-o a retornar ao Egito
para salvar o povo hebreu. Ele compartilhou o parto comigo, mas tomou
o filho para si. Deu-lhe o nome de Eliezer, pois o bebê trazia-lhe
esperança (9). A partir daquele dia, Moshe sentiu-se compelido
a voltar ao Egito. Não era mais realmente meu marido. Ele estava
consagrado a seu Deus.
Eu não estava certa sobre o que fazer. Será que deveria
volta com ele para o Egito? Ele não pensava nem um pouco em mim
ou em Gershom, mas queria Eliezer consigo. Impulsivamente, fiz planos
para que todos fôssemos viajar juntos . Deixamos a casa de meu pai
e nos pusemos a caminho.
Sentia uma confusão tão grande em minha alma... Eu não
queria deixar a casa de meu pai, mas amava Moshe muito e queria acompanhá-lo.
Ainda tinha tão pouco tempo do nascimento do Eliezer... No oitavo
dia, presenciei sua circuncisão, feita por Moshe. Mal consegui
forças para vê-lo cortar meu filho - era como se ele cortasse
minha própria carne. O menino ainda estava se recuperando e eu
ainda tinha sangramentos de pós-parto, quando iniciamos nossa viagem.
Moshe não falava comigo mas eu entendia o que ia pelo seu coração
só de olhar em seus olhos. Vi como eles queimavam de paixão
e temor.
Viajamos o dia todo, de volta ao Egito, mas quando fiquei fraca demais
para continuar, paramos numa pousada. Já era noite. Eu tive uma
visão. Vi Moshe sendo engolido por uma serpente, mensageira do
Deus único. Naquele momento entendi que poderia perdê-lo.
A serpente havia engolido tudo, menos o seu pênis (10). Compreendi,
então, que ou me tornava parte da visão de Moshe ou o perderia
completamente para este Deus que o esmagava. Foi aí que peguei
uma pedra e, quebrando o acordo feito com meu pai, circuncidei Gershom,
oferecendo este gesto como sinal de que todos nós serviríamos
ao Deus de Moshe. Eu observara Moshe circundar Eliezer antes, e sabia
como fazê-lo. Como foi difícil para mim cortar a carne de
Gershom, meu próprio primogênito! Coloquei o prepúcio
com sangue sobre o membro de Moshe e fiquei observando a serpente soltá-lo
. Ele dormia e eu o beijei, ele que era agora o meu noivo uma segunda
vez. Agora era meu noivo de sangue (11) e Gershom e eu estávamos
convertidos (12). Esperava que este gesto consolidasse minha ligação
com Moshe, unindo-nos em sua luta. Mas isso não era para acontecer.
Moshe, eu estava certa de que ao continuarmos nossa viagem pela manhã,
você se regozijaria com a minha decisão de juntar-me ao seu
povo, de fazer de meu filho um hebreu. Achei até que tinha visto
um brilho em seus olhos, que seu amor por mim tinha se reacendido. Mas
seu irmão Aaron nos encontrou na estrada. Ele nos olhou e disse-lhe
para nos mandar de volta para casa, em Midian. Você nunca me disse
o porquê. Ele temia por nós? No Egito, as coisas estavam
difíceis para os hebreus . Haveria muito sofrimento e confusão
e talvez ele não quisesse que sofrêssemos também (13).
No entanto, éramos a sua família; poderíamos tê-lo
ajudado em sua luta. Será que ele achava que nós o distrairíamos
e que você tinha uma missão a cumprir? Ele devia saber como
você queimava de paixão, como prestava pouca atenção
em nós. Ou será que ele se envergonhava de nós, sua
família de pele escura (14)? Tempos depois, ele seria punido por
repreendê-lo por nosso casamento. Ele não sabia que compartilhávamos
de sua genealogia (15) ou que estávamos decididos a seguir seu
Deus. E você nunca lhe contou isso. Mandou-nos de volta para Midian.
Não havia como discutir cm você ou Aaron. Voltamos para a
casa de meu pai.
Eu nunca me esquecerei daquela viagem, sozinha, com duas crianças
pequenas. sobrevivi porque tinha esperança de que algum dia retornaria
para você.
Em Midian criei nossos dois filhos. Fiel à promessa que fizera
na pousada, ensinei-lhes sobre o pai e seu Deus. Às vezes, eu cuidava
do rebanho. Minha vida era de paz. segura em casa, não senti necessidade
de nenhum outro homem em minha vida(16). Em algum lugar dentro de mim
eu esperava poder retornar a você. Foi papai quem teve a idéia
de procurá-lo. Ele ficou curioso com minhas histórias sobre
seu Deus; queria que eu conhecesse meu marido novamente. Encontramos você
e seu povo vagando pelo deserto. Eu desejava olhar seu rosto, o rosto
do qual eu sentia tanta saudade. Pensava sobre nossos primeiros anos juntos
- quando dividíamos pensamentos e sentimentos um com o outro, quando
o tirei de seu estado de choque e de dor, como a filha do faraó
o havia tirado da água. Lembrei-me de nossa vida juntos- mas você
havia esquecido. Você nos encontrou e saudou e beijou meu pai sem
ao menos dirigir-me uma só palavra (17). Como meu coração
se partiu naquele momento! Eu não era ninguém; eu não
existia para você. Você tomou seus filhos. Eles foram com
os homens se preparar para o momento no Sinai. Papai também foi
e tornou-se seu conselheiro de confiança. Fiquei abandonada, não
era mais sua esposa.
Miriam, sua irmã, fez amizade comigo e tornou-se uma irmã
para mim. Era minha guia, ensinando-me o jeito das mulheres israelitas
e todas as novas leis que você trouxe do Sinai. Certa vez, observei
as mulheres acendendo velas quando seus maridos receberam o manto da profecia
e perguntei-lhes sobre este costume. Ele me contou sobre a alegria que
as mulheres sentiam quando seus maridos eram honrados desta forma. Pela
minha expressão de tristeza ela se deu conta, pela primeira vez,
de que eu não sentia alegria em sua profecia. Ela não sabia
que você havia se separado de mim. Eu não sabia que isso
não acontecia com todos os profetas (18). Miriam compreendeu a
minha dor e chorou comigo. Sua raiva voltou-se contra você, em minha
defesa, entre as mulheres e até para Aaron. Ela deveria ter falado
de sua raiva com você ao invés de se utilizar de fofocas(19).
Por isso ela foi punida com lepra. Que dupla nós formávamos!-
Ela ficou branca e eu era escura como a noite, a bela mulher cushita(20).
Aaron também foi punido nesta época(21), mas por um motivo
diferente. Seu Deus lembrou-se de que ele havia feito você me mandar
embora do Egito e me abandonar - que ele não me respeitara. Sua
punição servia para lembrar a todos de que não devemos
julgar os outros até que estejamos em seu lugar. Aaron não
me conhecia, no entanto, presumiu saber o que era melhor para mim, que
eu não me encaixaria no seu povo. Isso não cabia a ele dizer.
Você tinha consciência do quanto me machucou, Moshe, ao me
afastar de sua vida. E mesmo todo o meu amor por você, toda a minha
beleza e devoção não conseguiram fazê-lo retornar
para mim. Você se dedicava somente ao seu Deus e eu fui excluída.
Apesar disso, passei a amar seu povo e seu Deus, mesmo quando você
permaneceu alheio. Nunca esperei que voltasse para mim. Não tinha
ilusões. Mas nunca quis outro homem; depois de você não
poderia haver outro. Permaneci com seu povo durante suas andanças
pelo deserto. Observei-o de longe- sua força sendo testada pelo
povo rebelde. Eu ansiava por ajudar-lhe, por dividir sua carga, mas não
era para ser assim.
Um dia, quando eu estava juntando maná, um pardal voou perto do
meu ombro e gorjeou no meu ouvido, despertando uma lembrança há
muito adormecida. Voei com ele.
Notas
1 . A palavra tsipora em hebraico significa pássaro. É relativa
à palavra árabe que significa piar, gorjear e assoviar.
Ela até soa como um chamado de pássaro. Veja Brown, Driver,
Biggs, Hebrew and English Lexicon of de Old Testament (London;Oxford University
Press, 1907 e 1968), p.861
2 Midrash Tanhuma 2:6, editado por S. Buber, citado em Louis Ginzberg,
The Legend of the Jews (Philadelphia;Jewish Publication Society, 1925
e 1968), 5:147;423. A referência é feita a Levítico
14:4, que indica que dois pássaros limpos e vivos fazem parte da
purificação contra a lepra.
3 Exodus Rabba 1:32. Para outras referências veja Ginzberg, 5:82;410.
4 Zohar II,126. Veja Ginzberg, 5:86;411. Josephus, em Antiguities III,
Explica que Moshe era descendente de Abraham de sétima geração
pela linha de Isaac e que Tsipora era descendente de Abraham de sexta
geração pela linha de Ketura.
5 Sefer Va Yosha 43-43, citado em Ginzberg, vol 2;294.
6 Ibid.
7 Lecha Êxodo 2:22, citado por Ginzberg 5:98;412.
8 Baseado no poema de Ana Siegel, "Parshat Tsipora". Usado com
permissão da autora.
9 Ibid
10 Rashi sôbre Êxodo 4:24
11 Dois comentários interessantes sobre o misterioso episódio
na taverna (Êxodo 4:24-26) encontram-se em Richard Rubenstein, The
Religious Imagination ( Boston: Beacon Press,1968),p.86f. e Umberto Cassuto,
A Commentary on the Book of Exodus, trad. I. Abrahams (Jerusalem: Magnes
Press, 1951 e 1967),p.58-61. Veja também Ginzberg, vol 5;423.
12 Veja Ginzberg 6:791;136.
13 Mechilta de Rabbi Ishmael, trad Jacob Z. Lauterbach( Philadelphia:JewishPublication
Society,1933,1961),vol 2,168 f.
14 Hanna Siegel (veja nota 8).
15 Veja nota 4.
16 Midrash Tanhuma 2:7, citado em Ginzberg3:64
17 Shulamit Magnus, num tikun leil Shavuot, na Filadélfia, 5.744.
18 Yelamedenu, Yalkut I, 738, citado em Ginzberg, 3256. Veja outras referências
em 6;90
19 Leihama Leibowitz, Studies in Bamidbar (Jerusalem: Word Zionist Organization,
1980) p.132.
20 Os comentários tendem a concordar que a mulher cushita em Números
12 é Tsipora, embora algumas lendas sugiram que isso se refere
a outra mulher de Moshe, uma etíope.(Veja Ginzberg, 5:80;408).
Os comentários consideram que ela é chamada de cushita(negra)
em referência à sua beleza e não à sua ancestralidade.
Rashi nota que "cushita" tem valor numérico (guematria)
que "bela"(yefat mareh) - 736. Chamavam-na cushita (escura)
para evitar o olho grande. Quer dizer, ao chamá-la de cushita evita-se
falar de sua grande beleza e assim mantêm-se os maus espíritos
longe. Veja também Ginzberg 6:488;90.
21 Veja Ginzberg , 3;259.
22 B.T. Mo'ed Katan, 16b. Rashi também se refere a Tispora como
piedosa. Para outras referências veja Ginzberg5:88;411.
SOBRE A AUTORA
Rebecca T. Alpert é reitora dos estudantes na Escola Rabínica
Reconstrucionista e é co-autora de Exploring Judaism: A Reconstructionist
Press. Ela também faz parte do Conselho Editorial da revista Reconstructionist,
onde este midrash (que faz parte da antologia And Leah's Eyes Were Tender:
A Celebration of Women in The Bible, editado por Donna Berman) foi originalmente
publicado (Reconstructionist, 8:4;24-27.Jan-Fev.,1988). A autora agradece
Jacob Stauber e Linda Holtzman por seus valiosos comentários.
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