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Parashá VA YERA- Comentários |
Davi L. Bogomoletz BERESHIT ( GÊNESIS), capítulo 22, 1-19 1 - E após estas coisas o Deus experimentou a Abrahão.
E disse Eis-me; ( Esta é uma tradução direta do texto bíblico. Nem todos os problemas propostos pelo texto puderam ser resolvidos. Ainda assim, a experiência acima permite ver um pouco mais claramente o "estilo" do texto bíblico, e possui um "sabor" verbal um pouco mais próximo ao original que as traduções existentes . A pontuação, inexistente no texto bíblico, foi substituída por letras maiúsculas no início de cada nova sentença. Ao leitor cabe a tarefa (como se faz com a Bíblia em hebraico) não só de ler mas também de pontuar.) Dezenove versículos. Dezenove versículos não muito longos contam a história do dia em que nasceu nosso povo, pertencer ao qual nos provoca essa permanente mistura de imenso orgulho, intenso sofrimento e, nos intervalos, extrema exasperação. Em dezenove frases um genial escriba narra uma história que se desenrola ao longo de três dias, envolve concretamente a vida e a morte, a consciência e a alienação, a máxima verdade e a mais deslavada mentira, o mais intenso sofrimento que o ser humano é capaz de experimentar - a morte eminente de um filho - e a maior batalha que alguém da nossa História jamais travou com esse Deus absurdamente absoluto - ao mesmo tempo o extremo TUDO e o mais completo NADA - que nos fundou um dia - talvez naquele exato dia em que ocorre essa pequena história - e nos empurra desde então, nem sempre com carinho, para frente, para lá onde se encontra o Seu desígnio esmagadoramente oculto. Um dia Abrahão ouviu a voz dizer que era a hora. Ergueu-se ainda noite, preparou o burro, chamou dois peões para segui-lo, acordou seu filho e o levou embora, para a morte. Por três dias caminharam em silêncio. Levavam lenha, fogo e faca. O filho quis saber: "E o cordeiro?" Perguntou: "Pai?" "Sim, meu filho." "E o cordeiro?" A dor do pai nos fere até hoje. A dor de alguém que vai matar um ser amado é mais que a dor de alguém que vai morrer. O pai deu uma resposta: "Deus providenciará o cordeiro, meu filho. Abrahão já havia mentido, fugindo de casa como um ladrão na noite, para que Sara, a mãe, não se metesse nem se matasse. Agora mente outra vez, pois nem mesmo ele, o supremo herói, teve coragem de dizer; "O cordeiro és tu, meu filho." Fraquejou. Procrastinou a resposta. Fez que não sabia. Mas por que fazer Isaac sofrer antes, se o que o espera é a própria morte? Na não-resposta a Isaac, certamente, está o imenso amor do pai. Ela vai matar o filho, pois o Deus no qual crê é mais poderoso que o seu amor paterno. Mas fazer o filho sofrer de antemão? Para quê? Abrahão já havia mentido anteriormente duas vezes. Em ambas, para salvar a própria vida, em lugares onde a vida não valia nada - só o desejo do poderoso tinha valor. Agora mente para prolongar a vida de seu filho, para não matá-lo antes da hora. Isaac e Abrahão andam juntos. Fora esse curto diálogo, nada mais. E o que mais haveria? Que Isaac entendeu, podemos adivinhar. Quando Abrahão o amarra ao altar ( como se fazia com os animais a serem sacrificados) ele não protesta, não berra, nada diz. Ele já sabia, ele já havia compreendido. Isaac, o filho amado, entende que ele é um instrumento, não uma vítima. A visão de um sofrimento absoluto no rosto do pai deve tê-lo feito entender .É a única explicação possível. O texto bíblico em geral é suficientemente honesto para não precisarmos imaginar que algum esperneio de Isaac teria sido omitido. Não houve. Como Abrahão aceitou a ordem divina, Isaac aceitou a ordem paterna, e deixou-se levar ao sacrifício. "Imperativo categórico", diria o poeta. "Uma causa maior que a vida", diria o herói, e também o mártir. A Abrahão não deve ter escapada a idéia de que, com esse Deus tão diferente dos outros, que não tinha forma, nem nome, nem lugar , ele estava deflagrando uma revolução. Não uma revolução política, mas uma revolução na própria identidade do humano. Uma revolução não ao nível do poder, mas ao nível do ser. Abrahão estava inventando a capacidade do ser humano de se preocupar com seus semelhantes, e não apenas com seus próprios desejos. Não é muito absurdo dizer que Abrahão estava inventando o amor, se imaginarmos que até então houvesse apenas desejo e posse. Amor, aqui, no sentido da capacidade de se sacrificar pelo outro, de suportar uma frustração em benefício do outro, de encolher o próprio desejo para que o outro usufrua *. Ele fez isso com o sobrinho Lot, com os aliados do sobrinho Lot, com os inimigos do sobrinho Lot, sobrinho esse que, sendo o seu único aliado natural num território totalmente estranho e hostil, o havia abandonado sem pestanejar para cuidar da própria vida. Ele fez isso com Sara, e com Hagar, e com os anjos que lhe apareceram disfarçados de simples viajantes.( Em tempo: Para os que não sabem, Abrahão nada tinha de "bonzinho". Não é disto que se trata aqui. Favor não confundir.) Pois Abrahão não foi apenas generoso. Abrahão, pelo que se pode deduzir das narrativas sobre ele, realmente amava. Não há nada na Torá sobre isso, antes de Abrahão. Até então temos trogloditas ferozes, brutais, autocentrados, uns mais outros menos. e ao tempo de Abrahão, e depois dele, continuaram a existir os trogloditas. Feras falante, ou então gado falante. Com Noé já tinha havido uma introdução ao tema. Por isso ele é chamado de "o justo". Mas Abrahão estabeleceu definitivamente essa nova modalidade de ser humano: o ser que ama, no sentido psicologicamente mais preciso do termo. Aquilo que Hilel resume quase dois mil anos depois , na fórmula mínima: "Não faças a teu semelhante o que detestas que façam a ti, esta é toda a Torá. ( O resto é a explicação disto, vá e estude)". Pois Hilel já sabia que a fórmula máxima - "Amarás teu semelhante como a ti mesmo"- não era possível: era pedir demais. Para Abrahão não era demais. Com isso ele fundou uma nova consciência, um novo comportamento, uma nova nação. Não me custa imaginar que, para demonstrar a si mesmo sua fé
absoluta no novo modo de ser humano que lhe ocorrera inaugurar, Abrahão
se dispusesse a perder sua "propriedade" mais valiosa: seu herdeiro,
o continuador natural ( e único) de sua obra. Esta é uma
hipótese psicológica, bem sei, e não religiosa ou
mística. Mas eu sou psicólogo, e não religioso ou
místico. No entanto, não posso deixar de tremer ante a idéia
de que a figura de Abrahão - um vetusto patriarca que viveu numa
era que atualmente com certeza chamaríamos de sangrenta e selvagem
- percebeu à perfeição essa coisa que , hoje, a psicanálise
mais refinada chama de Amor, e percebeu não só a coisa,
como a sua total a absoluta importância. Talvez por isso ( não
conheço a explicação dos eruditos) lemos O Sacrifício
de Isaac em Rosh Hashaná. Para que, no início de nosso calendário,
esteja o início de nossa identidade. Shaná tová |