SENDO O QUE NÃO SOMOS E O PECADO Rabino Nilton Bonder |
|
|
||
Quando pegamos uma fotografia de nosso passado, em particular aquelas de nossa adolescência ficamos muito mobilizados. Não é apenas o olhar de mais juventude que nos arrebata, mas o que não somos. Há traços nestas fotos de parte de nós que se perderam e não deveriam. São traços de vivacidade, de sonhos e de esperança que a rotina rouba de nós. O que começa como pequenos desvios, pequenas formas de não sermos nós mesmos se instala em nós e cresce descontroladamente. A memória de nosso corpo faz com que ele tenha tendências a repetir movimentos, e mecanismo idêntico ocorre com nosso comportamento. Ao treinar-nos para reagir de uma ou de outra forma no processo de sociabilização, retornamos sempre a esta conduta a não ser que coloquemos muito esforço psíquico para agir de forma distinta. O dia do Iom Kipur, é para a tradição judaica um dia de olhar velhas fotos. Dias de resgatar posturas do corpo, muito além do corpo, que já perdemos. Dias de reconhecer capacitações e possibilidades que não mais percebemos como opções. A pergunta destes dias é única: onde está o curto circuito? Porque somos ou nos permitimos ser o que não somos? Tudo começa no processo de entender a vida. As armadilhas são muitas e as mesmas para todos nós. E todos nós, em diferente medida, somos presa fácil para estas. Há uma má compreensão profunda de um dos princípios básicos da existência que de geração a geração é repassado e poderá ainda levar séculos para ser removida como padrão coletivo de nossa civilização. Esta má compreensão se dá na frase escrita no papel distribuído nas cadeiras da sinagoga nestes dias. Ele diz: "Im ein kemach, ein Torá" -- se não há "farinha" não há "Torá". Esta é a mish'na 21 do capítulo terceiro de Pirkei Avot. A má compreensão desta mish'na é responsável pela grande maioria de todos os nossos desvios de não sermos o que somos. O que diz a mish'na: "Rabi Eleazar b' Azaria diz: Não há Torá, não há boas maneiras, Esta é uma mish'na de como entender o mundo. A mish'na começa com Torá e termina com Torá. Sendo Torá, o caminho, o Tao, a harmonia e a saúde. Não há como se ter saúde sem que isto passe pela relação com os outros (boas maneiras) e pela relação com a sobrevivência (farinha). Equilibrar saúde com os outros e com o sustento é o que de mais difícil existe para nós. Vivemos muitas vezes mais pelos outros ou pelo sustento e adoecemos do medo, da vergonha, da repressão, de câncer, do coração, da pressão, da insegurança e daí por diante. Vivemos por vezes mais pela saúde (Torá) e esquecemos do outro e do sustento e adoecemos de egoísmo, de falta de sensibilidade, de hipocondria, de ilusão, de inveja, de saudades, de depressão. Porém o segredo da mish'na está não no equilíbrio mas na dependência. Não na busca incessante por regimes e dietas que nos permitam um pouco de Torá, um pouco de boas maneiras, um pouco de sustento, um pouco de Torá. O alerta de mish'na não é para a dosagem mas compreender que a verdadeira Torá depende do sustento ou das boas maneiras e vice-versa. Elas não são coisas separadas, mas uma mesma coisa. A potência da mish'na está no exemplo que recheia a explicação das dependências de obter-se Torá. Quais são os quatro mundos da leitura humana da realidade: reverência, compreensão, sabedoria, conhecimento. A primeira representa o mundo de Atsilut, emanações. Ser inteligente neste mundo é ser reverente ao que é apropriado. A segunda, é a inteligência no mundo de Bri'a, mundo do intelecto. Ser inteligente neste mundo é compreender. O terceito, Ietsira, mundo do sentimento, para o qual se coloca a sabedoria. E por último o mundo de Assiá, mundo físico, ou do conhecimento. O alerta da mish'na é de que os caminhos não são separados em momento algum. O que a consciência clama por sabedoria deve ser buscado por reverência; o que clama por reverência deve ser buscado por sabedoria. O que nos exige o sustento deve ser buscado com Torá, o que nos exige Torá deve ser buscado com sustento. E nós percebemos tudo tão ao contrário. Buscamos um pouco de sustento e aí um pouco de Torá, um pouco de Torá e aí um pouco de sustento. Neste caminho a vida é chata, monótona e não acumula fé a um indivíduo. Só quando a busca da Torá gera sustento, e o sustento produz Torá é que permanecemos com o lucro de nossas atividades. Lucro este que é a vivacidade que tínhamos nas fotografias e que representava uma caminhada saudável com a vida. Nossa saúde não esta nas moderações e nos equilíbrios como nos querem fazer crer todas as ciências modernas. Nossa saúde está na preservação de que o que começa aqui desemboca ali. Que a intenção verdadeira de relacionar-se com a vida é uma só. A gana por verdadeiro sustento impõe Torá, a gana por Torá impõe sustento. É da esquizofrenia de nossa compreensão do mundo que advém os desequilíbrios. A balança, a libra, que é o signo do mês de Kipur, que responde pela Justiça ou Justeza, é um símbolo que pode muito bem retratar nossa má compreensão. O segredo não é o balanceamento, pratos no mesmo nível. Se fosse este o segredo não haveria rotação na haste da balança, esta seria rígida. A balança é símbolo pois mostra a dependência. Não é doente quem tem sua balança pendendo para um lado ou outro, desde que sua compreensão seja a de que os pratos são interligados. Que este ano possa ser um ano onde suportemos nossos desequilíbrios com plena percepção da condição de conexão entre pratos da balança. Que nossas buscas artificiais por equilíbrios, de pratos no mesmo nível, não nos leve ainda mais longe para sermos o que não somos. Um ano de menos preocupação com o equilíbrio e mais com as conexões. Um ano onde o melhor dos dois mundos não seja uma interdição. Onde a realização e o crescimento na vida (Torá) possam traduzir-se em sustento. Onde o sustento traga realização e crescimento. |