O OUTRO TALIT S. Y. Agron |
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Sobre os meus outros xales de oração eu já contei. Então, agora, vou apenas acrescentar o que aconteceu em Yom Kipur com o Talit que eu havia deixado na sinagoga de meu avô, que descanse em paz. Naquele Yom Kipur, eu tinha a intenção de rezar com meu avô. Porque eu morava longe e havia ficado na cama tempo demais naquela manhã, cheguei após o cantar dos Psukei Dezimrá. Isso é verdadeiramente lamentável, pois em Yom Kipur, na sinagoga de meu avô, eles recitam essa parte do serviço verso por verso, com uma melodia especial. Já na minha infância, antes mesmo de eu saber o significado das palavras, sempre que o cantor envolvia seu rosto no Talit e entoava Chei Haolamim, eu ficava perplexo, porque o cantor chamava Ele em voz alta, embora Ele estivesse ali mesmo! Porque ele cobria a sua face? Se ele descobrisse seu rosto, o mundo inteiro se encheria de uma imensa alegria, tal como a que eu sentia quando brincava de esconde-esconde com meu pai. Nós costumávamos procurar um ao outro até que, finalmente, eu descobria meu rosto e então nós nos encontrávamos. Quando entrei na sinagoga, meu avô retirou o rosto de entre as dobras do seu Talit e virou-se de um lado para o outro, procurando um lugar vago para mim na sinagoga já lotada de fiéis. Perto da parede, à direita de meu avô, sentava-se um grupo de anciãos, cada qual parecendo diferente de todos os outros e, não precisa nem dizer, de outros homens em geral também. Seus rostos eram enrugados como passas, suas barbas pareciam paus de canela. Seus olhos, que não tinham cílios, eram avermelhados, e deles fluía uma felicidade tão substanciosa que se podia sentir com as mãos. Como foi que eles todos haviam se reunido em um só lugar, na sinagoga de meu avô, e porque suas feições eram tão diferentes? Um deles, entendendo o que meu avô queria dele, respondeu em aramaico: "A Lei de Yom Kipur não é como a de Pessach, que diz que todos os que desejam podem se sentar e come." Parafraseando a sua afirmação em termos do que estava sendo dito, podemos dizer: "Hoje, eu não tenho obrigação de me deslocar para conseguir um lugar para quem não tem um." Não queria que meu avô se desse ao trabalho por minha causa e lhe disse: "Por favor não se incomode comigo. Eu vou achar um lugar para mim. Eu estava falando à toa. Esta era a sinagoga dele e ele não encontrara um lugar para mim. Como eu poderia encontrar um lugar sozinho? Entretanto, meu avô estava aborrecido não só porque não havia lugar para mim, mas porque eu havia chegado tão tarde. Eu ponderei: Talvez eu devesse dizer-lhe que havia rezado o serviço matinal na sinagoga da minha vizinhança. Mas não se deve transformar um avô numa causa para contar-se mentiras. Por causa do aperto, do calor das velas e do grande número
de fiéis, o céu da minha boca estava seco. Leibel, o neto
do Zaddik, veio a mim. "Venha comigo", ele disse. Eu não
sabia porque ele me pediu para vir com ele, mas, atraído por ele,
eu fui. Eu peguei a jarra com ambas as mãos e a levei ao meu nariz, o tempo todo espantado: porque teria ele enchido a jarra com suco de frutas? Será que ele não conseguiu achar um pouco de água? O rosto impassível de Leibel não demonstrava nenhum desejo de responder às minhas perguntas. Enquanto isso, o suco da jarra começou a evaporar de encontro aos meus dentes. Eu apertei meus lábios de modo a proteger meus dentes do suco. Mas o suco continuou a borbulhar da borda da jarra para meus lábios, se solidificando em torno de meus nariz, esguichando em minha direção para que eu sentisse o gosto na boca. Fiquei enfurecido com o Leibel. Eu o agarrei e o arrastei comigo e até parecia que nós estávamos andando juntos. Quando retornamos à sinagoga, meu avô novamente lançou-me um olhar aborrecido. Será que ele tinha pressentido o que aconteceria? Eu agi como se houvesse alguma outra explicação. "Você está aborrecido porque eu estou sem um Talit. Eu vou buscar meu Talit, aquele que está aqui em sua sinagoga, e vou colocá-lo agora mesmo." Eu olhei para ver se ele estava satisfeito e vi que haviam trazido bancos para a sinagoga e colocado os bancos à esquerda da Arca Sagrada um em cima do outro, como os degraus de uma casa de banhos. Um homem, cujo nome eu não desejo mencionar, estava de pé no último degrau, vestindo um tipo de chapéu de padeiro e cantando hinos que não eram do serviço de Yom Kipur. Um menino pequeno- seu filho ou neto- estava de pé ao seu lado, acompanhando o hino com gesticulações tolas. Metade da congregação sorria olhando para eles. Como foi que eles chegaram lá? E quando eles chegaram lá? Enquanto isso, eles desceram e foram embora. "Que é isso?", eu me perguntei. "Quando meu avô estava procurando um lugar para mim, porque ele não olhou à esquerda da Arca? Havia vários bancos e muitos lugares vazios lá. E, também, como pode aquele homem ter saído no meio dos serviços, e para onde ele terá ido?" Meu avô apenas me olhava. De repente, eu procurei com a mão embaixo da mesa e encontrei meu Talit. Várias vezes eu havia procurado pelo meu Talit lá sem achá-lo, mas agora eu o encontrara. A menos que se diga que alguém o havia tirado e depois devolvido, é muito estranho. Enquanto eu me preparava para me enrolar no meu Talit, vi que uma das franjas estava faltando. Um certo sujeito, ao qual nós geralmente ignoramos, embora ele nunca nos ignore, sussurrou para mim: "seu Talit só tem três franjas." Eu comecei a ponderar: o que é que ele está me dizendo? E então eu não sei que um Talit somente com três franjas não pode ser usado? Ou será que ele quis me lembrar de uma tradição esquecida: enquanto a pessoa está viva, muito embora possa estar segurando em suas mãos um Talit de três franjas não lhe é permitido usá-lo. Mas quando se morre, eles nos vestem com um Talit adequado de quatro franjas, arrancam uma das franjas, e nos forçam a usá-lo. Uma depressão terrível me invadiu. Não por causa
do que havia sido sussurrado a mim, mas por causa deste santo dia de Yom
Kipur, que passou sem uma oração, sem nada. |