TASHLICH: A CABALA DO DESAPEGO

Benjamin Mandelbaum


 

 

O que é ?
Em Rosh Hashaná, Ano Novo, realizamos o Tashlich, o ritual de purificação que consiste em lançar farelos de pão, simbolizando nossos pecados, em água corrente, de preferência com peixes.

Quer dizer o que?
A tradução literal da palavra Tashlich é largar. Ela está presente em algumas passagens bíblicas. Assim, aparece no episódio de Hagar, mãe desolada com seu filho Ismael à morte. Eles estão no deserto, com água e pão. "Quando a água acabou, ela largou1 o menino sob um dos arbustos" , se afastando para não assistir seu fim. D"S, ao ouvir o pranto do menino, abriu os olhos de Hagar e ela viu uma fonte de água. Água do renascimento da vida. Vivenciamos como Hagar nossa aridez sentindo a sede de viver no Yom Kipur. Neste dia, pedimos avidamente a D"S que nos confirme no livro da vida, pois queremos que nos abra os olhos para vermos renovadamente a fonte da vida, na travessia dos desertos da nossa existência.

A palavra Tashlich aparece ainda na própria cerimônia, na qual se lê em forma de prece a passagem do versículo do profeta Miquéias. "Que sejam levados2 seus pecados para as profundezas do mar". Levados e lavados pela água.

No Yom Kipur, Dia da Purificação, lemos a palavra Tashlich na passagem bíblica em que Jonas recusara acatar o mandato Divino de levar o seu ultimato de arrependimento a Nínive. Quis ser mais realista que o Rei, não aceitando que o povo de Nínive tivesse uma oportunidade de se redimir. Jonas tenta fugir da sua missão embarcando. No momento em que o navio passava por uma enorme tormenta marítima mais uma vez ele refugia-se, agora no sono. Quando é acordado e trazido para disputar a sorte com os outros para definir a quem cabia a responsabilidade daquela tempestade. Finalmente se identifica, se apresentando ao chamado divino e se entrega, assumindo enfim sua responsabilidade. Quando ele é lançado, é largado3 ao mar, mais do que jogado, pois trata-se de entregar o que é devido ao Dono, para este abrandar a própria fúria Divina no mar. Jonas para ser purificado é guardado dentro de um ser marinho e devolvido a fonte da vida.

Por que a água? Por que pão ? Por que peixes?
Nestas passagens bíblicas Tashlich está associado, como no rito, com água, pão e peixes.

Água em hebraico é Maim, palavra que está presente em Sha-maim que quer dizer céus, pois queremos que nossa oração chegue lá, para o reencontro das águas de cima com as águas de baixo, como no início da criação do mundo. Água com que Abraão purificava os seres humanos como ensina o Zôhar. Água fluvial ou pluvial livre em seu devir, como é a água da Mikvé, imersão da purificação, da correnteza da natureza, que nos legou Sara.

Água pois é fonte renovadora da vida no mundo da criação. Lugar do nascimento da vida. Ela recicla, renova e transforma. É mole, mas perseverante, tanto bate até que fura. Água que é a própria entrega , que lembramos por sua força mas também pela brandura, já que é o elemento que cede e se amolda na forma do objeto que a contenha. Grandiosa ocupa a magnitude do nosso corpo e planeta, mas, como na terra, se oculta e se orienta no sentido das nossas mais profundas regiões. É o elemento que dilui e transporta, circulando energia.

O ritual realiza-se no início dos 10 dias intensos preparando-nos para entrega total do Yom Kipur, refletindo sobre nossa condição humana. A Água em sua profundidade simboliza emoção, como na dádiva divina das lágrimas, presente tanto no riso quanto no pranto, lavando nossa alma das mágoas, más águas que são. Água que, no entanto, na superfície espelha a nossa própria imagem. Tashlich é uma desconstrução do mito de Narciso que se apaixona pela sua própria imagem. Nos dias intensos, nosso espelho, como nosso coração, encontra-se partido. Tashlich é entregá-lo em migalhas à regeneração que a água fará através da ação curadora de sua natureza Divina, na reciclagem feita pelos peixes.

Os peixes estão presentes de várias formas no judaísmo, além de sua culinária. Símbolo da fecundidade do milagre da vida, vivendo na água, fonte criadora, eles se reproduzem intensamente e estão sempre de olhos abertos, atentos como devemos ser à espiritualidade. Peixes que estão figurados na 'Hamsa', amuleto de proteção, que tem a forma de uma mão e que segura o olho grande, gordo empanzinado de cobiça.

O pão representa o alimento universal, que alia o trigo ao trabalho do homem, representando o que os cabalistas chamam de pão da vergonha.. No trabalho somos companheiros, palavra que literalmente significa comer junto o pão, tal como aquele que repartimos no Shabat.

Em Pessach temos o ritual com o fogo, através da queima do pão como 'rametz', o fermento que inflaciona o nosso ego. Em Tashlich o pão incha na água. Pessach, Páscoa da Libertação, é libertar-se das impurezas que nos escravizam. Entretanto, na travessia do deserto do dia-a-dia , nosso livre arbítrio, tão difícil de assumir e de exercer, várias vezes quis retornar a escravidão. Reconhecemos no Tasclich que a escravidão não é mais a do Faraó, mas a das nossas próprias amarras , aprisionadas nas imagens egóicas com o apego aos preconceitos que temos, inclusive de nós mesmos. Apego é sinônimo de fixação, uma doença na prisão do passado, lugar da estreiteza que é Mitzraim, escravidão a idolatria das imagens.

Com as migalhas do pão da vergonha vão junto a vaidade e o orgulho, que são entregues a profundezas das águas servindo também como preparação para a entrega maior que acontece no Yom Kipur. Ele é o único dia em que os judeus se ajoelham humildemente à D"S, se prostrando na terra, entregando-se ao chão. As palavras humildade e humanidade se originam de Húmus, terra, tal como Adão vem também de Adamá, terra.

A busca da purificação e do perdão nos dias intensos passam por 3 caminhos: a Tefilá, a oração com intenção, de olhos abertos à espiritualidade, como os peixes simbolizam; a Tsedaká, justiça na distribuição da posse, como o compartilhar do nosso pão e a Teshuvá, retorno pelo reconhecimento do desvio, como a fluidez renovadora da água . Estão aí presentes 3 dimensões de desapego, pois quando oramos nos desapegamos da existência, quando doamos desapegamos da matéria e quando retornamos desapegamos do erro do orgulho.

Desapegar de que? Para que? Por quem?
Com o rito de Tashlich simbolizamos o desapego do ego4 , pois ele não é o senhor em sua própria casa. Nos enganamos egoicamente ao acharmos termos total consciência de nós mesmos. Nosso destino de auto-conhecimento é como a etimologia da palavra Torá, procurar. A humildade é essencial nesta travessia, pois nela temos obstáculos que nos revelam verdades ocultas e as perguntas servem para calçar os nossos caminhos, sem pré-conceitos.

Tashlich é desapegar5 , e assim, poder se entregar a mais profunda consciência sobre a existência humana, marcada pela distância que nos separa de nossos próprios sonhos. Entretanto, pior do que não realizar os sonhos é não os querer sonhar. A tentação de não sonhar, além de ser vã, é o pior pecado, que na essência etimológica quer dizer desvio do alvo. O desvio refere-se ao mais original mandato divino, presente no ato da Criação, "de crescer e multiplicar", onde crescer é mais que envelhecer ou envilecer, velhaca vileza. Crescer é desenvolver, evoluir, transformar. Nos alegramos com a consciência do nosso crescimento e nos entristecemos quando não.

Certa ocasião, os discípulos de R. Pinchas de Koretz alvoroçadamente discutiam sobre o mal, como este os perseguia e o que fazer para afugentá-lo. Aflitos chegam ao rabi, que lhes recomenda que deveriam, mais do que fugir, simplesmente se ocupar deles mesmos não correrem atrás do mal, como estavam fazendo. É uma forma nossa de apego esta perseguição ao mal, que deve ser encarada em seu mais amplo sentido no nosso cotidiano, tal como na escola da vida em que repetimos infinitamente as mesmas contas que estão certas, mas com o raciocínio errado, ou quando procuramos repetidamente nos mesmos lugares as coisas perdidas, que estão em outros ou quando insistimos em ingerir alimentos que já sabemos que nos fazem mal ou em se relacionar da mesma forma com as mesmas, ou outras, pessoas esperando obter resultados diferentes.

Desapegar do ego entretanto, não é esmagá-lo, humilhá-lo ou destruí-lo6 . Não é jogar longe, fora , é só abrir a mão, não se prender, nem se centrar no ego. Lembremos que antes de desapegar é preciso ter, pois sem ter não há do que se desapegar. Portanto, não se trata de não ter, mas sim, de ter e não se apegar. É muito mais fácil desapegar em tese do que de fato. Sabemos tão bem fazê-lo com aquilo que nós não temos, gerenciando facilmente o desapego que os outros deveriam fazer.

O egocentrismo é colocar o ego como centro. Desapego ao ego é tão simplesmente deixá-lo na periferia do ser, que é o seu importante lugar. O ego é o porta-voz de nossa essência, do si mesmo, mas não a própria voz da essência. O eu, com sua força vital, é porta voz da alma, mas não é a própria alma. O ego em seu lugar de base, Yesod na Árvore da Vida, é a interface, ponte de contato entre Tiferet, centro do ser si mesmo, com Malkut, reino da existência da matéria.

No caminho da reunificação ou da ascensão , como chama a Cabala, devemos nos livrar dos pesos, fardos de pecados-desvios, para ficarmos mais leves. Para isso fazemos o Tashlich. É para nós mesmos que o fazemos. É desapego, abrir mão das teimosias, flexibilizar nossa dura cérvix do orgulho, amolecendo nossa carne dura de pescoço. É liberar-se da obsessão pelos meios como se eles fossem o fim. É entregar os pontos nesta hora de fechamento do balanço anual. É a 'realização do prejuízo' para se projetar e prosperar renovados sonhos de transformação. É entregar-se as evidências, reconhecendo o fato existencial sem argumentos. É concordar com a concordata para não falecer na falência. A arte da fé de entregar a D"S é a sabedoria que o que não tem remédio, remediado está. É entregar os anéis para ficarem os dedos.

E a Cabala ?
Cabala ou Cabalá é receber e compartilhar as Graças Divinas. Para receber é preciso primeiro esvaziar, desapegar. Mais livres e leves nos preparamos para subir a "Escada de Jacó". Ela está na Árvore da Vida e tem um degrau em cada Sefirá, esfera , e que se conecta com a seguinte. O caminho de ascensão é não se apegar em nenhuma sefirá7 , para atingir o supremo encontro divino. É desatrelar-se das amarras do passado, nele apenas apoiando um pé, desfazendo-se de ilusões para ficarem as esperanças, estas que se projetam com o outro pé para frente e para cima, superando obstáculos, 'qlipoth', vícios das virtudes, carapaças das sefirot, na caminhada do nosso conhecimento, desenvolvimento e cura.

Na Árvore da Vida, Abraão é colocado na 4a Sefirá que é Hessed, Graça, pela sua magnânima generosidade. Nosso patriarca tem a benevolência de saciar com sua água a sede dos andarilhos do deserto. Esta grandeza de compartilhar o bem maior do deserto com outros faz do desapego uma referência em nossa ancestralidade. Sua generosidade ancora-se na fé da providência divina, pois ele estava permanentemente ligado a fonte da criação. Abraão espelha não só a imagem mas a semelhança com o Criador. Sua inspiração é divina, pois está em D"S, na própria criação do mundo, o primeiro ato de desapego. A cabala nos ensina sobre o TzimTzum, a grande auto-contração divina, como uma forma de desapego de D"S em relação a si mesmo, na medida em que abre um espaço em sua Omnidade para a obra da criação, em seu desejo de compartilhar conosco de seu estado de bem aventurança.

O Tzimtzum8 é uma referência modelar da função que os pais tem em se retrair, e não se anular, para permitir que o filho se revele. Inversamente aqueles pais que se apegam idolatricamente às imagens do ego, egocentricamente e que não abrem espaço para o filho, que é filho da vida, se expressar como criatura que cria. O pai kafkiano é esmagador, persecutório e humilhador. O pai tzimtzum longe de ser omisso é aquele que se retrai para abrir espaço para o filho manifestar-se em seu livre-arbítrio. Kafka disse que o homem perdeu o paraíso por causa de sua pressa, pois não soube esperar sua própria maturação ao fruto, e não retorna ao Édem por causa de sua preguiça, teimosa em não trabalhar a si mesmo. No primeiro é o apego ao imediatismo e no segundo um paradoxal apego em um futuro que se adia permanentemente.

Para utilizar bem um castiçal devemos limpá-lo das velhas velas acumuladas, desapegarmos delas, para que a nova luz brilhe límpida. Assim também fazemos na mandala de nossa Árvore da Vida, abrindo as taças sefiróticas para melhor receber a luz divina. A Árvore da Vida nos ensina sobre os 4 níveis de entrega usando a coluna central, a Coluna da Suavidade, que equilibra as duas laterais, a da Misericórdia e da Severidade. Assim em Malkut, o Reino, é o Lugar de todo o recebimento; em Yesod, o alicerce, a entrega se fundamenta na troca com o ato de receber; em Tiferet, a beleza da verdade do amor, onde a própria entrega já é recebimento e em Éter, a coroa da criação, é a canalização pura da entrega integrando-se com Malkut em um mundo supremo, tirando a Schechiná, presença feminina de D"S, de seu exílio .

Nestes tempos, nossas mentes e corações se voltam destramente para Jerusalém. Umbigo do mundo, cidade que tem a paz em seu nome, mas que não consegue vivê-la desde a sua fundação, sempre alvo de disputas. A Terra Malkutiana de Israel é lugar de sobrevivência dos 4 elementos do povo israelita. Foi fundamental, yesodianamente , reconquistá-la, uma vez que estávamos excluídos dela. Agora , por amor tiférico a ela podemos renunciar a sua exclusividade possessiva para que se cumpra o seu destino de cidade da paz. Para canalizarmos a doação suprema em Kéter, é hora de nos prepararmos para sua histórica missão mística e transcendental para unir a Jerusalém terrena com a celestial.

Realizemos um correlato do TzimTzum humano que são os Tikuns, as correções dos apegos, tanto de si mesmo, no coração, o Tikun Lev, quanto do mundo, o Tikun Olam, para que o advindo messiânico ainda se dê em nossos dias, quando as armas se transformarão em arados e o lobo conviverá com o cordeiro, quando Ele será Um e Seu Nome será Um. Enfim, é momento de investirmos para que Jerusalém se transforme na casa de oração de todos os povos. Para que possa, como capital da paz mundial, agir como cristal aglutinador da Paz unindo os povos sem fronteiras. Desapegando dela enquanto ídolo e projetá-la enquanto símbolo real de uma Nova Era.

Benjamin Mandelbaum

1. Gênesis XXI v.15 "Va-Tashlech et há-ieled" , 'largou' como está na tradução de Kaplan, 'A Torá Viva''p.92, diferentemente de 'jogou' como está na tradução de Melamed, 'A Lei de Moisés' p. 42. Aqui, o verbo que se origina a palavra Tashlich não pode ser jogou ou lançou mas sim largou, deixou, entregou.
2. "Ve Tashlich Bi Metsulot Yam Kol Chatotam".
3. "Va-Tashlicheni".
4. A Psicanálise legou a entrega através da expressão da livre associação de idéias e fantasias, a Filosofia a entrega e expressão dos pensamentos, a Análise Bioenergética a entrega expressiva das sensações e sentimentos, a Arte a entrega na expressão estética e a Espiritualidade da Cabala a transcendência na entrega integrativa a D"S.
5. Desapegar é renunciar a padrões viciados de comportamento. Estes padrões podem ter sido eficazes no passado, mas não são mais no presente. Nos apegamos a eles como na parábola sufi de Nasrudin, que tinha uma namorada alta e que passou a carregar uma pedra para poder alcançá-la e beijá-la, mas continuou carregando a pedra, mesmo depois de terem terminado o namoro.
6. O jejum não visa a mortificação do corpo vivo, que é condenado dentro do judaísmo. O jejum contata com os limites corporais do ego sem querer destruí-lo, pois é terminantemente proibido de ser feito quando coloque em risco a vida de quem o faz, quando não estiver em condições saudáveis de fazê-lo. Portanto, crianças, doentes e idosos debilitados, todos com uma intensa fragilidade egóica com risco de falência devem se abster. Assim, o jejum só é prescrito a partir da maioridade responsabilisadora do Bar e Bat-Mitzvá.
7. São 10 sefirot, taças que recebem e distribuem as Graças Divinas, sendo que cada uma está em todas e todas em cada uma.
8. Por outro lado, o desapego do TzimTzum tem uma certa analogia com o" princípio da não ação" da sabedoria oriental que, longe de passividade, a não ação é desapego ao controle, pois é entrega, sem apego, sem aversão e sem indiferença.

Bibliografia:
A Torá Viva -Trad. R. Aryeh Kaplan. Ed. Maayanot.
A Lei de Moisés e as Haftarot- Tradução de R. Meir Melamed. Ed. Sêfer.
Dicionário Hebraico - Português - A . e S. Hatzamri . Ed. Aurora
Existência a Luz da Cabala -M. Rotenberg . Ed. Imago
Histórias do Rabi- Martin Buber. Ed. Perspectiva.
Meditação Cabalista- Benjamin Mandelbaum.
Rosh Ha-Shana & Iom Kipur: Dias Intensos- R. Nilton Bonder. Ed.Imago.
Zôhar: Textos selecionados por Iaacov Rotnes.

Benjamin Mandelbaum
Médico, Psiquiatra, Psicanalista, Analista Bioenergético, Poeta, Filósofo e Cabalista.


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