CHAD GADIÁ Rabino Nilton Bonder |
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Talvez uma das canções mais consagradas da Hagadá de Pessach, seja Chad Gadia ("um cabritinho"). De autoria desconhecida, datando da Idade Média, esta canção popular acabou sendo incluída na Hagadá por razões que nunca ficaram muito compreendidas. Chad Gadia encaixa-se no estilo popular que elabora sobre a cadeia de forças constantemente em interação:"... e veio o boi que bebeu a água, que apagou o fogo, que queimou a vara, que bateu no cachorro, que mordeu o gato, que estraçalhou o cabritinho." A cadeia não se encerra no boi que acaba sendo eliminado pelo Shochet ( açougueiro ritual), que é levado pelo anjo da morte que termina subjugado por Deus. Também é verdade que a cadeia não se inicia com o "cabritinho", mas com dois "zuzim"- - dinheiro pelo qual foi comprado o "cabritinho". Do dinheiro representativo, daquilo que tem menos valore poder a Deus que é o máximo em valor e poder, Chad Gadia parece estabelecer ciclos do cotidiano. Tradicionalmente busca-se explicar a inclusão de Chad Gadia, no ritual de Pessach como sendo uma referência simbólica a Israel ( o cabritinho ou bode expiatório), que é destroçado por forças maiores que as dela, mas que é redimida no fato de que estas forças não são absolutas ou máximas. Também elas se esvanecem e acabam por revelar-se o poder maior que rege e toma conta de todos os encadeamentos, de todos os processos. O tempo termina em Deus- o depois do depois do depois é Deus. Toda a força e todo o ato termina em Deus. Chad Gadia seria, portanto, um desabafo da judiaria medieval a tantos anos de perseguição e opressão onde a única esperança restante era a de que no final, no acerto final de contas, alguém esbarraria em Deus. Exata explicação é bastante coerente, porém deixa de fora a razão pela qual esta seria uma mensagem universal e eterna a ser preservada na Hagadá. Tentemos entender a Hagadá ( bem como todos os textos canonizados) como uma espécie de mensagem em garrafa flutuando pelos mares do tempo. Afinal, não é tão moderno o desejo humano de comunicar sua natureza e suas questões a um Outro, como temos visto em naves que são enviadas aos confins do espaço conhecido contendo mensagens sobre a Humanidade. Desde os tempos antigos esta possibilidade era contemplada. Não a de viagens no espaço, mas no tempo. A Hagadá é um dos muitos "Voyagers" lançados na antigüidade, uma nave dos judeus, sobre suas experiências específicas, contendo uma mensagem decifrável e decodificável em termos de universalidade e eternidade de seu sentido e valor. Partindo-se desta premissa então algo parece estar faltando para compreendermos a conexão entre esta melodia aparentemente ingênua e infantil e a Hagadá. Para decifrar este enigma os rabinos criaram mecanismos lógicos e evidentes que permitem desvendar o que foi cifrado como cantiga de crianças. Tal qual a NASA acredita que suas informações lançadas ao universo podem ser decodificadas se estudadas à luz de uma lógica que é universal, da mesma forma os rabinos visualizaram sua mensagem como podendo ser captada por qualquer um que tenha um aparato humano, e tornando-se , em determinadas condições, decifrável. A pergunta, portanto, seria: "Que condições são estas?" E a resposta óbvia contida no próprio sentido do lançamento desta nave- Hagadá seria: Se fosse possível reproduzir uma situação parecida a esta vivida no Egito, quando originou-se sua motivação, ou a vivida na época do domínio romano, quando originou-se sua linguagem ( Hagadá), seria também possível compreender a mensagem. Ou seja, qualquer situação de opressão pode, juntamente com a sensibilidade humana, decifras o sentido da Hagadá, inclusive o significado de Chad Gadia. Não foi por acaso, portanto, que há poucos meses começou a tocar nas rádios israelenses e a ser vendida nas lojas uma melodia que viria a fazer sucesso e impactar uma sociedade.- Chad Gadia. Como se um novo momento-brecha houvesse permitido que seu significado fosse resgatado e Chad Gadia ressurgisse desta vez ( como de todas as vezes) como uma música de protesto. A cantora Chava Alberstein começa cantando o Chad Gadia tradicional e atraindo a atenção dos ouvintes a quem num determinado instante ela se dirige: "Você talvez se pergunte: Por que, de repente, ela está cantando Chad Gadia? A primavera não começou e Pessach ainda não chegou? E o que mudou ( Ma hishtaná)? Eu MUDEI ( Ani hishtaneiti)! Porque todas as noites sempre perguntei apenas quatro perguntas ( arba kushiot)... mas esta noite tenho mais uma pergunta: "Até quando prosseguirá este ciclo de infâmia?" Perseguido e perseguidor , abatido e abatedor, prossegue sempre este ciclo de dor." Vivendo num país em guerra, Chava Alberstein se percebe vítima e vilã. Descobre que está imersa num ciclo que faz sempre sentido - de luta pelo poder. Seja com olhos de cabritinho ou de lobo vivemos constantemente em interações deste gênero descritas no Chad Gadia. Mesmo nossa liberdade, sujeito maior nas noites de Pessach, convidado maior das portas que se abrem, mesmo esta só pode-se concretizar quando pulamos fora deste ciclo que a tudo engole na natureza. Ciclo do dia- a-dia , ciclo dos exilados, dos não-redimidos, ciclo não terminado. Chad Gadia cantam as crianças. De sua boca ingênua palavras ingênua, uma noite ingênua onde nos céus travasse uma batalha cósmica. Até quando continuará este ciclo? Chava Alberstein nos dá a receita de Pessach, descrita na força de Chad Gadia: até que saibamos perguntar uma nova pergunta... Até que a mudança de fora das idéias e das ritualizações ( Ma Nishtaná ? O que mudou? ) Faça caminho até nossos corações e digamos: Ani Hishtaneiti há- shaná! ( Fui eu que mudei !). |