DE PASSAGEM Rabino Nilton Bonder |
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Ano após ano comentamos sobre os significados de Pessach. Um, o mais objetivo de todos, no entanto, nos escapa. O nome do próprio evento: Pessach (Páscoa). Os israelitas sacrificaram cordeiros e com seu sangue mancharam os umbrais de suas portas protegendo-se da ação do Anjo da Morte sobre seus primogênitos. Porém o próprio texto da Torá usa este nome como um verbo: "ve-raiti et ha-dam u-PaSaCH'ti aleichem" (e verei o sangue e saltarei sobre vós). O ato de passagem é registrado no inconsciente de forma tão impactante que este é o dia: o dia de passagem. O verbo passar é um verbo estranho. Há nele algo de impermanente e ao mesmo tempo algo de perpetuidade. Quem passou já não mais está; permanece, no entanto, o registro. Se não lembramos de um momento de alegria ou de sofrimento ele não existiu. Uma máxima da sabedoria Idische diz: " O que foi, foi e não retorna" e quem viver viverá para compreendê-la. No entanto, há dois lugares distintos desde onde podemos enxergar a vida. Podemos olhar a vida pela perspectiva da permanência e descobrir que realmente nada fica. As pessoas gradualmente se modificam a nossa volta: conhecemos novas almas e personalidades enquanto nos despedimos de outras. Nossos endereços do passado, nossas paisagens, nossas estradas vão ganhando novo jeito. As fotografias amarelam, o saído da fábrica passa a ranger, as fibras viçosas dão lugar a estrias e esgarçamento. Vus geven is geven ! Ou podemos entender este mundo pelo olhar da "passagem". Quem passa faz uma marca nos umbrais da história. Esta marca é o registro daquilo que passou -- memória contada de geração em geração. Quem puder olhar a vida como Pessach sem o apego de parar, encontrará o gosto da Redenção, da salvação que afasta o Anjo da Morte. A Liberdade manifesta na saída do Egito é a descoberta do olhar de passagem. Sem considerar este mundo como nossa morada eterna, sem fazer nele planos definitivos, somos mais livres. A grande doença do mundo do consumo de nossos dias é querer evitar que celebremos a vida por Pessach - por passagem. Mas é de passagem, livres da escravidão da permanência, que temos coragem de abrir nossas portas ao Profeta Elias. A festa da primavera, da vitória da vida sobre o inverno, não é a festa do triunfo permanente, mas celebra a passagem que revigora, renova e dá esperança. Celebrar Pessach é rever o Chametz, o levedo-impureza, que se agrega a nossa alma a medida que a vida passa. Em nosso afã de conter esta passagem, de estanca-la, a existência se torna pesada, enfadonha e tomada por medos de perda. Abre a porta e a janela. Sai das trevas dos temores do que nos é reservado no futuro pois este é tão deprimente como um passado que "foi e não mais será". Junte a sua família em torno de uma mesa mágica encantada pelo carinho e por laços de amor que nos aproximam. Permita que a leve embriaguez do vinho doce se misture com o verdadeiro ingrediente da Hagadá - o passado e o futuro condensados neste momento ( Como se nós mesmos tivéssemos sido tirados do Egito!). Celebre o amargo, beba das lágrimas, recline como os bem-sucedidos, relembre do secreto manifesto no Afikoman, fale das receitas irresgatáveis do passado e reconheça aquelas do presente que jamais serão reproduzidas no futuro. Viva um verdadeiro Seder como o da primeira noite. Naquela noite, diferente das outras, família reunida num registro primitivo e insconsciente, celebrava a passagem da vida, da transitoriedade de tudo. Olhos nos olhos em torno da mesa enquanto que do lado de fora este registro de olhares marcava as portas onde o mórbido fica impotente. A porta por onde entra o Profeta Elias é a porta por onde nós mesmos entramos e por onde também saímos. É esta porta aberta que nos relembra da "passagem" e nos faz mais humildes. Pois nesta noite de saber que o "estrangeiro" somos nós mesmos, que o "visitante" e não o residente somos todos nós é a noite da Festa da Passagem. Sagrado o que foi e sagrado o que será. Mas e esta noite? Esta noite é diferente de todas as outras. Pois nas outras noites o tempo passa e nós nos agarramos em desespero ao que parece ficar. Mas nada fica. Nesta noite nós é que nos fazemos de passagem. Entregues a este fluxo, sem medo, mas com prazer, gira a vida a nossa volta e a esperança é o gosto final de uma noite de dormir tardio. |