A DESTRUIÇÃO DO "AGORA"

Rabino Nilton Bonder

 


 

 

Tisha be-Av é um ponto focal do calendário hebraico.

Associado normalmente a tragédias coletivas no decorrer da História, seu emblema maior é a destruição dos Templos. Seu clima de perplexidade, de luto e de saudosismo, teria tudo para ser deplorável ao espírito triunfal dos judeus do final do século XX. O que pareceria sucumbir a uma realidade de um Israel construído, de um povo judeu que não experimenta mais um exílio e de um desejo de encerrar o capítulo de autocomiseração e vitimização, surpreende ganhando força e significado.

Porque Tisha be-Av tem se tornado um ponto focal no calendário judaico em pleno século XXI? Porque comunidades modernizadas e produtoras de cultura como a dos Estados Unidos oferecem cada vez mais leituras das Lamentações para públicos cada vez maiores e mais emocionados com a data?

Porque estaríamos tão interessados por sermos confortados? Porque a busca por consolo?

Porque o choro de Sion nos comove? Seria apenas a lembrança da dor do passado? Seria este fenômeno apenas uma questão de memória?

Suspeito que não. A força de Tisha be-Av parece ser mais viva, mais emoção em relação a algo que acontece hoje, do que identificação com o lamento do passado.

Mas o que seria este elemento tão poderoso em nossos dias?

Acredito que há um mito recorrente na "destruição do Templo" que cala fundo na alma e que transcende o relato e a memória histórica. Façamos uma análise. O que é um templo? Explica o dicionário: local misterioso e respeitável. Mais que isto é o lugar de encontro com D'us. E é daqui que gostaria de dar um salto: o "quantum" de um templo é o nosso próprio corpo. Não há redução menor a este lugar misterioso e respeitoso, encontro entre criatura e Criador, do que nosso próprio corpo. Nossa encarnação é produtora constante destes encontros e em nosso ser existe um altar onde se fazem constantes oferendas de vida. Este lugar tão sagrado, tão elevado, que carrega as marcas de nossa experiência, em cujas rugas e cicatrizes estão encravadas serviços de júbilo e dor, de amor e ódio, de medo e coragem, esse templo será um dia destruído.

Essa realidade nos aproxima muito do choro e do lamento e os faz expressão apropriada de aspectos de nossas emoções. Choramos por perceber que aquilo que é sagrado e consagrado não é eterno e não é invulnerável ao tempo e às transformações. Tisha be-Av é uma celebração da impermanência.

O tempo destrói os templos. Os monumentos, as matsevot, fundados em pedra se esfarelam com o tempo. Não importa a intensidade das experiências e dos momentos vividos, os templos se destroem. Perceber isto é um choque constante para os seres humanos. É o olhar no espelho que nos revela que queima no altar de nossa existência o "agora" que permanentemente se faz depois. E tão real parece ser esta referência maior de Tisha be-Av que uma frase se sobressai a todas, como se num "ato falho" da tradição: chadesh iameinu ke-kedem (renova nossos dias como "antes"). A palavra ke-kedem - como antes -- ressoa nas profundezas humanas. O agora que é símbolo da explosão da vida, o sagrado maior, patrimônio maior, se esvai sob nossa incredulidade. Como pode? Como posso eu estar passando? Como pode minha geração, meu tempo, minha contemporaneidade, estar passando?

Nesta catarse que faz eruptir gases e fermentações profundas da existência, está o mito de que é neste dia, nesta emoção, que nascerá o mashiach - o Messias. Talvez o mashiach, o salvador, ou a salvação, seja a sensação de externar este lamento de renovação da santidade do passado - do antes - que apenas este novo "agora" pode resgatar. Porque enquanto houver vida (e quem sabe até para além) o sagrado deste novo "agora" nos resgata da dor do "antes sagrado" que se desfez.


MENU TISHÁ B'AV MENU FESTAS