O profeta é conhecido, em primeiro lugar, como aquele que vê
o futuro. A palavra que o designa em hebraico, navi, pode ser compreendida
como designando "aquele que traz", ou seja, aquele que traz
de longe alguma coisa que não está no aqui e agora. Enquanto
místico, ou seja, aquele que se relaciona com "a outra realidade",
o profeta tinha de fato a visão do futuro, pois Aryêh Kaplan
já mostrou como a inspiração profética se
produzia graças a sofisticados exercícios de meditação,
que levavam os que a praticavam a sair do nível comum de percepção
para alcançar o que eu aqui chamaria, para efeitos meramente descritivos,
de "ultra-percepção". (Nos livros "Meditação
Judaica" e "Meditação e a Bíblia",
Kaplan explica de que modo os profetas utilizavam a meditação.)
E pelo menos em um lugar, o profeta é designado na Bíblia
como "vidente". Mas, por tudo o que podemos ver, se lermos os
seus textos, não era essa a sua função mais importante.
E
Eu havia prometido a vocês falar hoje do profeta como político,
filósofo, poeta, conjunto de atividades, ou atribuições,
muito mais importantes na história da profecia bíblica.
Eu deveria, então, falar um pouco de cada uma dessas dimensões.
Mas não é o que vou fazer. Eu me dei conta de que para conhecer
o profeta enquanto poeta basta abrir a Bíblia. E vou dar um exemplo.
Abri o livro do profeta Sofonias - Tzefanyâh - um profeta considerado
"menor", porque o seu texto é muito curto. É um
dos "doze", os profetas de textos muito pequenos, contidos todos
num único livro. Ele é considerado um profeta admoestador,
de duros discursos contra os opressores e os exploradores. Nele encontramos
a idéia de que os homens de bem de Israel serão salvos,
enquanto os maus perecerão, e o mesmo ocorrerá às
outras nações: as que se salvarem reconhecerão a
Lei de Ad'. No capítulo 3 temos alguns versículos que funcionarão
como exemplo tanto de linguagem poética quando de discurso político.
Infelizmente, o ritmo muito marcado dos versos em hebraico não
pode ser fielmente transmitido na tradução, o que diminui
em muito o seu impacto. Aqui tentei uma tradução um tanto
livre, justamente na intenção de preservar o ritmo do texto
original.
Ó rebelde e suja, cidade opressora.
Não ouviu a voz,
Nada aprendeu,
Não confia em D's
Nem dele se aproxima.
Ministros há, mas são leões que urram.
Juizes tem, mas como os lobos são, da noite:
Nada deixam p'ra amanhã.
Seus profetas - doidivanas,
São homens da traição.
Os sacerdotes profanaram o Santo,
Violaram a Lei.
Em seu seio é Ad', o Justo, Jamais fará o mal,
Pois todo dia é dado o seu juízo à luz,
Não falta, Ele,
E não conhece crime ou culpa.
Obliterei países, esquinas desolei,
Eu lhes destruí as ruas, passantes não há mais.
Cidades desabaram, homens já não há.
Pensei: Talvez me temas, tu,
Aprenderás moral,
Então não ruirá seu Lar,
Não sobrevirão meus votos.
Mas não, pois esmeraram-se
Em degradar seus feitos.
(Sofonias, 3,1-7)
Esta é uma pequena amostra. O profeta derrama lava incandescente
de sua boca. A retórica, essa arte grega por excelência,
encontra um bom rival entre os profetas. E aqui, neste pequeno trecho,
o espírito da profecia está todo presente: Admoestação,
reprovação da crueldade e da corrupção, advertência
pelo exemplo dos povos castigados, e a esperança, a eterna esperança
de D's, de que o povo se emende.
A política aparece aqui como sinônimo de justiça:
o profeta é advogado dos explorados, campeão dos injustiçados,
adversário violento dos que maltratam o povo.
Quando eu era criança, vivi em Israel. Naquela época, o
sistema educacional israelense era inteiramente politizado: Cada partido
tinha as suas escolas, e os pais mandavam os filhas para as escolas que
mais tinham a ver com a sua ideologia, ou então para a escola que
ficava mais perto. Eu, por motivos de vizinhança, não de
ideologia, fui parar numa escola do então MAPAI, o partido trabalhista
de Israel, o mesmo de Ben Gurion. Apesar de, no espectro político
geral, o Mapai ter sido um partido moderado, ainda assim sua ideologia
socialista - portanto materialista dialética - era mutíssimo
pregnante e vívida. Na escola estudávamos Tanách
como uma das matérias normais do currículo. E eu então
aprendi Tanách numa escola socialista. Resultado: Nunca me esqueci
de que o D's dos judeus é socialista: Abomina os ricos que exploram,
e defende com unhas e dentes os pobres e as humilhados.
O D's dos judeus é o D's da Justiça, não do Direito,
nem da Caridade, ou do Amor. E o termo justiça, no pensamento judaico,
não se parece nem um pouco com a idéia de Direito, no sentido
que os romanos lhe deram. E também não pode ser assimilado
à idéia de rigor, de retidão - fenômeno designado
por Din - e daí "Midát haDin", a dimensão
do Rigor. A Justiça, para os judeus, significa não simplesmente
a instância que instaura a lei entre os iguais, mas a instância
que protege os desvalidos, os menos favorecidos.
Nietzsche tinha razão: Os judeus inventaram o direito dos mais
fracos,
por oposição à lei do mais forte. Pode-se dizer,
então, que os judeus inventaram a culpa, o superego. E o Cristianismo
levou essa idéia adiante. Mas Nietzsche atribuiu a decadência
da sociedade européia à degeneração provocada
pela tendência a proteger o mesquinho, o medíocre, em vez
de dar liberdade ao criador, ao forte.
Pois não foi essa a intenção do pensamento hebraico,
do qual os profetas são representantes de primeira grandeza. A
intenção era impedir que aquele que
têm os meios façam automaticamente valer os seus fins. Pois
os interesses de um não interessam necesssariamente ao outro, e
a sociedade deve velar justamente por aqueles cujos meios são exíguos.
A Lei romana entronizou o Direito como forma de proteger os interesses
daquele que têm mais. A Lei judaica protegia os interesses dos que
tinham menos - ou ao menos, como dizem os profetas - devia fazê-lo,
se seus juizes não fossem como os lobos da noite, devorando tudo
que lhes caía nas mãos.
Alguns dias atrás, ouvindo o Rabino Bonder falar na sinagoga da
CJB sobre a questão da lei judaica, ocorreu-me perceber que todo
o pensamento judaico só pode ser compreendido pela idéia
da lógica paradoxal. Por lógica paradoxal entendo aquele
tipo de funcionamento mental em que os dois lados de um conflito convivem,
em vez de eliminarem um ao outro. Por isso não cabe falar, aqui,
de dialética, pois a lógica dialética admite os contrários,
mas admite também a superação da oposição.
No paradoxo não há superação, não há
supremacia. É precisamente a lógica que preside a Filosofia
Oriental, do yin e do yang: Ambos devem existir, sempre, embora se oponham
e vivam em conflito. O que percebi, graças a essa idéia,
é que é possível, graças a essa idéia,
compreender claramente o que distanciou o pensamento judaico tanto do
pensamento romano quanto do pensamento cristão, seus contemporâneos.
Pois no pensamento romano, digamos assim, predominava "Midát
haDín", a "Dimensão do Rigor" - a lógica
formal, o pensamento correto, a razão. E no pensamento cristão
passou a predominar a "Middt haRahamírn", a "Dimensão
da Compaixão", com sua bondade, sua tolerância, seu
pensamento mais emocional que racional. Claro, para nós hoje é
fácil perceber que o pensamento cristão deixou-se permear
em grande medida pela forma de pensar romana. O que interessa, porém,
é a idéia de que o pensamento judaico original não
foi inteiramente capturado pela lógica formal criada pelos gregos
e transformada em Razão Fria pelos romanos. E também não
se deixou contagiar pela excessiva presença da idéia da
compaixão, como o pensamento cristão. Um resultado lateral
desta reflexão é que o Cristianismo, surgido no seio do
Judaísmo mas crescendo e lançando raízes em Roma,
não em Jerusalém, teve na verdade como seu grande adversário
o espírito de Roma, não de Israel, mas isto precisou ser
inteiramente camuflado logo depois, quando Roma o aceitou como religião
do Estado.
Conseqüência: O excesso de um lado e de outro são prejudiciais,
diz o Judaísmo. Mas adverte: Como a tendência dos homens
é cair para o lado do Rigor, pois isto ao mesmo tempo simplifica
o aparente caos da existência e lhes dá mais poder, é
no lado da Compaixão que se deve insistir mais, para que os cabeças
duras e os corações de pedra aprendam a enxergar a dor do
semelhante.
Diversos profetas - Jeremías é o exemplo máximo,
mas há outros - falaram de política no sentido internacional
da palavra. Isaías é outro exemplo. O discurso político
no sentido "macro" dos profetas fala principalmente das alianças
que os reis de Judáh e Israel procuravam fazer com os reinos vizinhos.
Este é um assunto fascinante em si mesmo, mas não vou abordá-lo
aqui, a não ser para dizer que, do ponto de vista desses profetas,
as alianças com países vizinhos podiam implicar muitas vezes
em desfazer a aliança com o D's de Israel, e então voltamos
ao meu ponto de partida. Desejei mostrar apenas como, para o profeta bíblico,
"política" era sinônimo de "justiça",
e "justiça" era sinônimo de "compaixão
que relativiza o rigor". Ou seja: Os profetas buscavam instaurar
uma sociedade onde a Lei do Mais Forte fosse inteiramente abolida. Sabemos
que não foi isso que aconteceu, pelo menos até hoje. Mas
uma coisa é certa: Com tudo o que tenho contra os "haredím",
por seu nacionalismo psicótico e seu auto-centrismo cego e desavergonhado,
devo reconhecer que, entre eles, a criminalidade é baixíssima,
e a proteção aos direitos dos mais fracos é um hábito,
não uma imposição. Certa vez um sábio do Talmud,
o famoso Rabi Meir, foi criticado por ser amigo de Reish Lakish, um grande
pecador. Disse ele: "Meir achou uma romã, comeu sua polpa
e jogou a casca fora". Ou seja: Não é preciso imitar
tudo que o outro faz, basta aprender com ele o que for bom e útil.
Talvez devamos pensar um pouco nisso.
JONAS - O PROFETA PARADIGMÁTICO
Curiosa, a história de Jonas. Tudo acontece a ele - desde ser
o eleito de D's, até quase morrer no naufrágio. Desde salvar
urna grande cidade do desastre, até desfalecer de canícula
e pedir pata morrer. Por três vezes Jonas fala em morrer, logo ele,
que salva da morte tanto os pobres marinheiros mediterrâneos quanto
todos os seres vivos de Nínive. A telegráfica epopéia
de Jonas, tão breve quanto contundente, é uma bela amostra,
completa em si mesma, do que significa, na linguagem bíblica, o
verbo "profetizar".
Pois o que é o profeta? Um filósofo, como Sócrates,
por exemplo, que pretende educar o povo e transformá-lo num povo
melhor? Um político, como Cromwell, que lidera um movimento de
reforma total do regime que governa o país? Um poeta, como Balzac,
que, armado apenas de sua pena, sacode a consciência de uma nação
e a faz tomar uma decisão diferente da que tinha tomado?
Será o profeta tudo isso ao mesmo tempo? E o que dizer dos
profetas individualmente? Eram todos iguais? Havia diferenças marcantes
entre eles?
Para falar a verdade, não pude ler integralmente todos os textos
dos dezessete profetas bíblicos (incluindo Daniel), com seus livros
mais ou menos volumosos. Tenho uma idéia razoavelmente abrangente,
porém, segundo a qual podem haver distinções de personalidade,
de estilo e de profundidade entre eles, mas não diferenças
de intenção. E é sua intenção que me
interessa.
Foi por isto que tomei o livro de Jonas como exemplo paradigmático.
Pois as intenções da função do profeta surgem
cristalinas nesse livro.
De propósito, disse "as intenções da função
do profeta", e não "as intenções do profeta",
justamente porque Jonas contraria tais intenções, e não
tem intenção alguma de exercer a sua função.
Ele foge dela, ele a renega, ele não concorda com a idéia
de, por exercer sua função, alcançar a intenção
e realizá-la.
Jonas surge, então, como um "caso", um exemplo cristalino
e belo, que nos leva a entender de uma vez o que faziam - e por que o
faziam - os profetas. O que pretendiam eles. O que buscavam com sua oratória
candente, violenta, absolutamente esmagadora - tanto ao ameaçar
quanto ao consolar.
Tudo o que li dos profetas até hoje - e não foi muito, embora
não tenha sido pouco - leva-me a crer que não só
é inteiramente desavisada a idéia de que eles simplesmente
"previam o futuro", como é superficial a idéia
de que eles tentavam fazer o povo comportar-se melhor e seguir as leis
de D's. Não são poucas as vociferações contra
os que cumprem a lei, mas se esquecem dos oprimidos. E verdade que, na
Toráh de Moisés, muitas são as leis que impelem o
homem a realizar a justiça social. Portanto, o judeu que cumpre
a lei está automaticamente agindo em prol do bem estar social.
Mas uma coisa é agir nesse sentido, cumprindo simplesmente os mandamentos,
e outra coisa é considerar a importância disto, indo além
dos mandamentos. Pois não basta, para que uma sociedade seja considerada
justa, o cumprimento dos preceitos e dos regulamentos. É perfeitamente
possível ser um canalha e ainda assim cumprir direitinho todos
os mandamentos. Maimônides chama esse homem de "canalha amparado
na Toráh".
A leitura dos profetas nos leva ao que há de mais nobre, mais específico,
mais excelso da civilização judaica - este, ao menos, é
o meu ponto de vista. É preciso entender, então, em que
consiste essa literatura - e por que sua importância.
Gostaria de começar contando que, nos Estados Unidos, uma certa
pesquisa de psicologia social registrou resultados um tanto inusitados.
Apresentaram a um grupo de homens e mulheres uma situação
hipotética: Um homem, precisando comprar determinado remédio,
vai à farmácia e descobre que não tem o dinheiro
necessário para a compra. Ele então rouba o remédio
e vai para casa. Pergunta: O que você acha do comportamento do personagem?
Resposta masculina predominante: Ele estava errado, o roubo é um
crime, não devia ter feito isso. Resposta feminina predominante:
Depende muito de qual era a situação. E se a mulher dele
estava à morte? E se alguém precisava demais do remédio?
E se ele voltasse e pagasse no dia seguinte?, e assim por diante.
Conclusão: Os homens tendem a ser esquemático, dividindo
as possibilidades em duas - certo ou errado, bem e mal. As mulheres são
mais complexas: Tentam examinar as várias configurações
da situação, e julgá-las mais pelo contexto que por
um critério externo a elas. Os homens tendem à abstração,
as mulheres tendem à concretude. Os homens referem-se à
idéia, as mulheres se relacionam com o indivíduo de carne
e osso. Por fim, podemos dizer que os homens, mostrando maior tendência
à racionalidade, impessoalizam a situação e se importam
com o geral. As mulheres individualizam a situação, e se
importam mais com o singular.
Pelo pouco dito até agora, alguém já podem ter adivinhado
a que lugar pretendo chegar: Sim, à idéia de que o discurso
profético é, na sua essência, na sua intenção,
um discurso feminino.
Mas feminino não quer dizer "pertencente a mulheres".
A coisa é muito mais complicada.
Podemos começar com os famosos termos chineses yin e yang: o primeiro
refere-se a uma força que, sem realmente agir, possibilita a ação.
O yin seria, então, uma espécie de útero, dentro
do qual o feto pode crescer. O útero não faz o feto crescer,
mas sem ele não há chances para o feto. Essa é a
força do yin. Podemos chamá-la de feminina. Já a
força do yang é tipicamente masculina: É a força
que avança, que ultrapassa, que tira do caminho, que remove montanhas
e aplaina vales. O yang fabrica pontes. O yin deita-se e se deixa atravessar.
Winnicott, o psicanalista inglês, conhecendo ou não essas
idéias chinesas, fala em Ser, o princípio feminino, e Fazer,
o principio masculino. Ser é a função mental que
é, que vive, que sente. Fazer, como o nome diz, é a função
mental que funciona, que aciona, que constrói. Ser e Fazer perfazem
a mente como um todo. Equivalem, respectivamente, ao hemisfério
direito e esquerdo do cérebro. Quando há equilíbrio,
temos uma pessoa que só pode ser chamada de "sábio"
- ou "sábia". Quando o equilíbrio não ocorre,
temos alguém tipicamente normal. E quando o equilíbrio é
acentuado demais, temos o fascínora, o puro Fazer, ou o tolo, o
puro Ser.
Na filosofia judaica, e também no nosso misticismo, temos essas
duas vertentes do humano descritas em termos de "Midát haDín"
e "Midát haRahamím", a Dimensão do Rigor
e a Dimensão da Compaixão. Jayme Barylko, em seu livro "Cabaláh,
a Ciência da Luz", faz um diagrama das funções
mentais de cada hemisfério, e as correlaciona com os dois lados
da Árvore da Vida, a Árvore das Sefirót.
OS DOIS CÉREBROS
|
Hemisfério esquerdo |
Hemisfério direito
|
|
|
Fala/verbal
Logico/ matemático
Linear, detalhista
Seqüencial
Controlado
Intelectual
Dominante
Mundano
Ativo
Analítico
Leitura, escrita, nomeação
Ordenamento seqüencial
Percepção de uma ordem de significados
Seqúências motoras complexas |
Espacial/musical
Holístico
Artístico, simbólico
Simultâneo
Emocional
Intuitivo, criativo
Menor
Espiritual
Receptivo
Sintético, Gestáltico
Reconhecimento facial
Compreensão simultânea
Percepção de pautas abstratas
Reconhecimento de figuras complexas
|
|
(Extraído de:
Leyes de los medios, Marshall McLuhan, Alianza Editorial, México
1990.)
|
|
OS DOIS LADOS
|
|
|
RIGOR
BINÁH
GHEVURÁH
|
GENEROSIDADE
HOCHMÁH
HÉSSED
|
Ficou claro, então, por que chamo o discurso profético
de "feminino". Ele é feminino na medida em que sua preocupação
principal não é com o Fazer, e sim com o Ser. Não
é com o yang, mas com o yin. Pois é o Ser, o yin, que carrega
em si a sensibilidade da percepção do outro, o diferente,
como um "sujeito igual em direitos". Para o yang, o outro ou
é um objetivo, ou um objeto, ou um rival. É o yin, portanto,
que nos permite desempenhar a arte do relacionamento.
Buber chama, inclusive, explicitamente a relação do tipo
yin de Relação Eu - Tu, e a relação do tipo
yang de Relação Eu - Isso. Ele não usa esses termos
chineses, é óbvio, mas o significado é exatamente
esse.
Assim, vemos o profeta às voltas com a eterna tarefa de enfiar
um pouco de yin na cabeça yang do homem em sociedade - sabendo
nós, obviamente, que a predominância do masculino nas situações
sociais tenderia a tornar a sociedade injusta, manca, doente, e por fim
auto-destrutiva. (Não foi por outra razão que Sodoma e Gomorra
foram destruídas...)
Os nossos profetas, então, nos convocam a dar lugar, ao lado das
nossas ambições, à sensibilidade e à compaixão.
A sociedade patriarcal (e praticamente todas, são com algumas honrosas
exceções que, ao final de contas, apenas enfatizam a regra)
tende a se esquecer de que um dos primeiros deveres da sociedade humana
é abolir a lei do mais forte. Abrahão o propôs como
projeto de civilização, (eu até escrevi um trabalho
a esse respeito), e de lá para cá o que vemos ao longo de
toda a Bíblia é a luta incessante de alguns malucos, convencidos
de que são porta-vozes de D's, para amolecer a cabeça dura
dos homens, aqueles que mandam na sociedade, a fim de fazê-los perceberem
que o sofrimento do outro é pelo menos tão importante quanto
o prazer deles mesmos.
Amós o faz, e Isaías, e Jeremias, e todos os outros. E Jonas.
Mas Jonas o faz contra a vontade, e com isso torna visível a olho
nu qual a função do profeta: Cumprir a vontade do D's bíblico,
o D's paciente e compassivo (hanún verahúm), (apesar de
não ser nem um pouco "bonzinho"...) de levar os homens
a se comportarem de modo igualmente paciente e compassivo, para assim
merecerem a paciência e a compaixão de D's.
A HISTORIA DE JONAS
Jonas é deveras paradigmático. Primeiro, é um
exemplo perfeito do assim chamado Homem. Ele se comporta o tempo todo
como um digno representante da "raça masculina": Primeiro,
evita a responsabilidade, ao fugir da Judéia, como um típico
descendente de Caím, o irmão mais bruto de Abel. Segundo,
no navio, ele não se preocupa muito em deixar a tripulação
a salvo daquele que é o seu próprio problema: Enquanto a
tempestade ruge lá fora e os marinheiros entram em pânico,
ele deita e adormece o sono não dos justos, mas dos que se consideram
mais importantes que o resto do mundo. Terceiro, ao capitular e cumprir
o mandato de D's, ele ainda assim se sente revoltado ao ver o arrependimento
da população de Nínive, pois para ele, uma vez pecadores,
mereciam eles castigo, e não misericórdia. Quarto, por um
lado ele é muito autoritário, e por outro, é muito
ligado às "regras do jogo", pois a cada momento em que
as coisas não funcionam como ele acha certo, diz que prefere morrer
a suportar a humilhação de não ter a sua vontade
cumprida. Jonas é um menino grande, dirá qualquer mulher
que se preze.
Pois já em seu próprio nome - Yonáh - esse profeta
nos revela toda a contradição nele existente. O termo yonáh
possui dois significados opostos. Primeiro, o mais conhecido: pomba. Sim:
yonáh significa pomba, a pomba da paz, o casal de pombinhos, etc.
Na Bíblia Hebraica a pomba simboliza isso tudo. Simboliza a inocência,
a pureza, a beleza. Mas há um outro significado, e quis a Providência
que eu nele tropeçasse de modo inteiramente involuntário.
O primeiro versículo do trecho do profeta Sofonias, que citei logo
no início, traz a expressão "ir yonáh",
que as bíblias em português traduzem por "cidade opressora".
De fato, consultei os comentários judaicos da Bíblia, e
lá está esse significado estranho, diferente do que eu esperava.
A palavra yonáh, como adjetivo (feminino) significa também
"opressora". Portanto, yonáh significa ao mesmo tempo
"pomba", o símbolo da paz e da harmonia, e "opressor",
termo que indica guerra, crueldade, destruição do outro.
E no entanto, esse é o profeta! Esse é o homem que D's usa
corno instrumento para implementar sua vontade! E esse é o texto
que os judeus lêem na sinagoga no Yom Kipur! Sim - justamente no
Yom Kipur!
Pois é isso mesmo: O profeta Jonas se revela, com sua condição
um tanto torta, um tanto fora de esquadro, um tanto marginal no quadro
geral dos profetas, como a cristalização numa única
história de todo o drama - ao mesmo tempo do homem e do profeta.
Jonas representa o homem comum no que ele tem de comum: egoísta,
auto-centrado, infantil, estreito. "Cabeça pequena".
Mas representa também o profeta - no que este tem de mais sublime:
Ele dialoga com a Divindade, ele leva a palavra divina aos homens, ele
é o eixo em torno do qual vários fenômenos extraordinários
acontecem, ele é interlocutor direto de D's.
Perguntamos: Como é que pode? E a resposta não tarda: Qual
o problema? Afinal, de que outro modo a Bíblia retrata Moisés,
Abrahão, David, Salomão e todos os outros? O que têm
estes todos de tão extraordinário, a ponto de Jonas precisar
se envergonhar de ser quem é?
Interessante, não? Os santos homens da Bíblia Hebraica não
são nada santos. Podem até ser grandes homens, mas de santos
têm muito pouco. Então Jonas está em boa companhia,
pois além de todas as suas características como homem, ele
tem mais uma: É poeta! E o poeta mora no lado direito do cérebro,
no lado yin, no lado do Ser, no lado feminino!
Por isso ele é escolhido, por isso ele representa D's junto aos
homens, por isso D's o escolhe para cumprir um mandato: Porque, apesar
de tudo, e apesar de si mesmo, Jonas é dotado de compaixão.
Ele não pula para salvar os marinheiros, mas quando percebe que
não há como fugir, comporta-se com toda a dignidade de quem
aceita sacrificar-se para salvar os outros.
Claro, sua identidade masculina prevalece. Mas não é absoluta.
Na sua oração, Jonas se diz fraco, derrotado, impotente.
Um homem "que é homem" jamais o confessará. Jonas
é, portanto, o homem melhorado, o homem masculino com o necessário
elemento feminino, acrescentando à lógica e ao rigor - apanágios
da masculinidade - o toque feminino da sensibilidade e da percepção
do outro. Por isso Jonas é paradigmático: por ser comum
demais. Não é um santo, não é um herói,
não é um maravilhoso sábio. Amós também
diz o mesmo sobre si, "Não sou profeta, nem filho de profeta",
e se apresenta como simples pastor, ou criador de gado. Por isso foi Jonas
escolhido pelos sábios para proporcionar o necessário toque
artístico no ritual severo do Yom Kipur: Porque ele é excessivamente
como todos nós, e mesmo assim D's o trata como a um igual. Jonas
representa muito bem a condição do profeta justamente porque,
acima de tudo, ele representa a condição humana - capaz
de descer e subir na escada da santidade. E é isso que o Judaísmo
espera de nós, e por isso recolheu os discursos dos profetas -
para ensiná-lo a nós: Não precisamos SER santos -
mas precisamos tentar. Essa, aliás, é a grande lição
do próprio Judaísmo como um todo: O homem é esse
ser comum, até tacanho, bobo, medíocre - mas capaz de elevar-se,
de tornar-se melhor que ele mesmo. Não há no Judaísmo
um parâmetro absoluto de como o homem deve ser: há, ao contrario,
a clara demonstração de que somos uma grande mistura de
gente de todo os tipos, e cada um de nós - uma grande mistura de
todas as características possíveis, as positivas e as negativas.
A percepção do homem no Tanách tem como marca registrada
essa não idealização do homem - mesmo dos considerados
"grandes homens". O único homem "perfeito"
na Bíblia Hebraica é Jó - e justamente por isso ele
é posto à prova - para ver até onde vai essa perfeição...
Jonas, então, representa maravilhosamente ao mesmo tempo os grandes
homens da Bíblia e a todos nós, pobres e comuns mortais.
Por um outro lado, porém, ele é o mais universal de todos
os profetas, pois é sobre Nínive - capital da Assíria,
e não sobre Israel - que ele vai exercer o seu poder de profecia,
a fim de salvá-la do castigo divino. Há até uma interpretação
segundo a qual Nínive deveria ser salva porque a Assíria
estava predestinada a cumprir um outro mandato de D's - o de destruir
o Reino Setentrional, de Israel, que havia se separado da outra parte,
Yehudáh, depois da morte de Salomão. Segundo essa interpretação,
Jonas se recusou a cumprir a ordem de D's exatamente por saber que esse
era o Seu plano, e neste caso o seu universalismo seria apenas aparente:
O que Jonas realmente estava fazendo era advogando em causa própria.
Mas pelo menos fica aqui uma amostra de quão complexa e multi-facetada
a interpretação da Bíblia pode ser.
Gostaria de reforçar um pouco mais o aspecto "feminino"
do discurso dos profetas. Conforme todos sabem, nos textos proféticos
de caráter social há uma insistente referência aos
"órfãos e viúvas". Os profetas falam dos
"pobres" e dos "oprimidos" de forma geral, mas muitas
vezes usam a fórmula "órfãos e viúvas"
para caracterizar aqueles indivíduos que, numa sociedade, mais
precisam de cuidados e da proteção do corpo coletivo. Os
órfãos e as viúvas são aqueles que não
têm quem brigue por eles, quem reivindique os seus direitos. Para
os profetas, as noções de justiça social e de direitos
humanos são praticamente sinônimas. Na nossa sociedade, "justiça
social" refere-se a um segmento da população, é
uma noção que eu chamaria aqui de "sociológica",
pois lida com grupos, com camadas, com grandes massas. Já a noção
de "direitos humanos" é vista mais como se referindo
a indivíduos, ou então a pequenos grupos específicos,
identificados por serem diferentes da maioria. Para os profetas, conforme
deduzo da leitura de seus textos, as duas expressões se equivalem,
e isto é muito importante. Porque é como se, em vez de falar
de uma "classe" oprimida, eles falassem de "indivíduos"
oprimidos, e em vez de falar da necessidade de "proteger os carentes",
tornando estes, então, objetos da ação social, eles
falassem dos "direitos dos necessitados", vendo-os como sujeitos,
sujeitos de um direito, e não como objetos, objetos da caridade.
Por isso, sempre que surge a necessidade de traduzir a palavra "tzedakáh",
esbarramos com a dificuldade semântica de trazer para o português
essa conotação ativa que a palavra tem em hebraico, pois
em hebraico ela tem um significado muito mais próximo de "justiça"
ou "direito" que de "caridade" ou "generosidade",
e infinitamente mais enobrecedor daquele que recebe que a noção
de "esmola". Mas é esse o termo usado em hebraico para
indicar até mesmo o dinheirinho que se dá ao pedinte na
rua.
"Órfãos e viúvas", portanto, são
pessoas. São gente de carne e osso. Não são uma "categoria
social". Vemos, então, como os profetas insistem em manter
sempre na nossa mente a percepção do outro como um ser físico,
concreto, em tudo igual a nós mesmos. É fácil perceber
os "fracos e oprimidos" mais como uma expressão abstrata,
impessoal, que como um substantivo concreto, imediato. Já "órfãos
e viúvas" tem essa outra conotação de concretude,
de presença física.
Por esta característica, o texto dos profetas mais urna vez revela
sua "feminilidade". Pois, como na pesquisa mencionada no início,
é uma tendência feminina a de perceber o particular antes
que o geral, de perceber a situação antes que o ponto específico,
de perceber o aspecto relacionar antes que uma imagem isolada. A percepção
feminina está mais próxima da verdade pós-moderna
que da verdade moderna. A modernidade produziu "verdades" que,
até serem desautorizadas pelos pensadores revolucionários
da pós-modernidade, eram tidas como absolutas. Filhas da razão,
tais verdades adquiriam por isso um poder enorme, capaz de esmagar todos
os "erros" que apareciam à sua frente. Não foi
à toa que o pensamento moderno conferiu aos homens a capacidade
de tiranizar outros em nome de suas "verdades" superiores. Nesse
ponto, pode-se dizer que a modernidade destronou a religião, mas
antes disso roubou dela a máquina de matar infiéis, e converteu
o painel dessa máquina para indicar não mais "infiéis"
a serem convertidos ou mortos, mas "inferiores" a serem "educados"
- ou mortos.
A generalização e a abstração são funções
muito importantes da mente, extremamente úteis numa infinidade
de situações, como por exemplo em todas as situações
que pertencem às "ciências da natureza". Só
não devem prevalecer quando se trata de seres humanos. Ou melhor:
Só não devem prevalecer no momento de emitirmos um juízo
de valor negativo sobre seres humanos. É essa a grande lição
da pós-modernidade, com sua teimosa ênfase sobre a noção
de "direitos humanos", que na verdade significa "direitos
do indivíduo", que por sua vez significa: A razão não
tem o direito de decidir o que é melhor para um indivíduo
específico. Só ele mesmo tem esse direito. Isto, na modernidade,
era um absurdo - e não foi à toa que tantas ideologias massificadoras
- negadoras da diferença - surgiram durante a vigência daquele
modo de pensar.
O profeta, portanto, apesar de intensamente masculino na violência
de sua retórica, no fogo sagrado que se eleva de sua palavra, é
feminino nesse seu modo de perceber e de nos mostrar o outro: O outro
não é objeto da nossa generosidade, ele é sujeito
de direitos específicos. Como noção geral, não
muito rigorosa mas muito útil enquanto descrição
- e enquanto alerta - eu diria que o profeta é um filósofo
que superou a modernidade, no que ele tem de feminino nos dois sentidos
da palavras: primeiro, no sentido da compaixão que equilibra o
poder da lei, e segundo, no sentido da percepção do particular,
do individual, que equilibra o poder da razão, esse rolo compressor
que a tudo achata e a tudo generaliza.
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