Todo o mundo conhece a história de Adão e Eva. Estavam
os dois no Paraíso, estava tudo bem, chegou a serpente, convenceu
Eva de que o fruto da Árvore do Saber não matava ninguém,
Deus é que tinha ciúme de quem o comesse, pois se tornaria
igual a Ele, e Eva comeu e deu um para Adão também, que
não viu por que não comer, se Eva estava comendo e continuava
inteira. Abriram-se os olhos de ambos, e viram que estavam nus, envergonharam-se
e correram para se esconder atrás da moita, pois Deus vinha vindo,
passeando que estava à brisa do entardecer. Chegando ao local onde
o casal costumava ficar, e não os encontrando, Deus perguntou:
"Adão, onde estás?"
O comandante da prisão onde Rabi Shneur Zalman de Liady, fundador
do Chabad, estava encarcerado por calúnia das autoridades judaicas,
era um homem culto e bastante sensível. Ficou impressionado com
o ar majestoso de seu prisioneiro, e um dia, bom cristão que era,
entrou em sua cela para fazer-lhe uma pergunta.
"Como se explica que Deus, sendo onisciente e onipresente, precisasse
perguntar a Adão 'onde ele está'? Será que Deus realmente
não sabia? Gostaria muito de entender isto, mas não consigo."
Disse-lhe o velho rabino: "Deus perguntou a Adão 'Onde estás?'
não porque não o soubesse. Deus não queria saber
onde Adão estava. Deus queria que Adão tomasse consciência
de onde ele estava, agora, depois de ter cometido a transgressão.
E essa pergunta não vale só para Adão - ela vale
para cada um de nós, ao longo de toda a nossa vida, e ao longo
de todas as gerações."
Assim, logo de saída, o tzadík nos explica há
duzentos anos atrás por que a Toráh, entregue ao povo judeu
há precisamente 3312 anos (segundo anúncio publicado ontem
em O Globo pela filial carioca do movimento por ele fundado na Polônia),
continua sendo esse livro fundamental para a nossa vida cotidiana aqui
(no Rio de Janeiro) e agora (3312 anos depois).
PORQUE O QUE ESTÁ ESCRITO NÃO É O QUE ESTÁ
ESCRITO.
O QUE ESTÁ ESCRITO É O QUE NÓS ENTENDEMOS DO QUE
ESTÁ ESCRITO.
O texto é infinito, porque o homem que o lê é infinito,
assim como o Deus que o escreveu. Por isso é preciso tomar consciência:
Porque se fôssemos finitos saberíamos sempre 'onde estamos',
e não seria necessário perguntar nada. A ninguém.
Para o Judaísmo não hassídico tudo isto é
óbvio. Não é exatamente ignorado, simplesmente é
deixado de lado. Pois para o Judaísmo não hassídico
ao homem não cabe fazer perguntas. Um rabino não-hassídico
não teria respondido ao funcionário russo da mesma forma.
Ele teria dito algo como: "Deus sabe o que faz, e não nos
cabe questionar os Seus métodos".
Do ponto de vista hassídico, embora não nos caiba questionar
os métodos de Deus, nos é dada a liberdade de tentar entendê-los
tanto quanto possível. O Judaísmo não hassídico
também considera que o homem é infinito, mas não
perde muito tempo com isso. Já para o Judaísmo hassídico,
esta é uma dimensão essencial e de importância sempre
presente do ser humano. Pois somos infinitos. Cada um de nós. Cada
um de nós que habitamos o planeta Terra.
A beleza do Hassidismo está nesta percepção da
infinitude. Foi daí que Buber extraiu a idéia do Tu - um
tu infinito, que não pode ser conhecido inteiramente. Segundo Buber,
as coisas concretas podem ser conhecidas a ponto de não precisarmos
ficar perplexos com elas. Os seres humanos, não.
Quando nos relacionamos com um outro ser humano sem essa dimensão
de perplexidade, sem esse sentimento de estranheza, sem nos darmos conta
de que estamos diante de algo grande demais para conhecermos inteiramente,
nesse momento estamos nos relacionamento com uma 'coisa', não com
um 'ser'. Quando queremos que esse outro seja como nós o concebemos,
esquecemo-nos de levar em conta que ele é como é (mesmo
que ele próprio nunca saiba como é), e o transformamos em
coisa. Quando alguém evita pensar e formular as próprias
opiniões, adotando as de outro, transforma a si mesmo em coisa.
A religião é um paradoxo: ao mesmo tempo é preciso
ouvir, aceitar a tradição, e pensar, inovar a tradição.
Os que apenas seguem a tradição colocam-se na condição
de 'coisas', não de 'seres'. Os que apenas formulam as próprias
idéias e evitam ouvir a tradição saem fora do contexto
da religião. Os que ouvem o que diz a tradição e
com base nisso criam novas possibilidades estão exercendo a sua
dimensão infinita.
Se Deus existe e criou o homem, mas não desejava um homem infinito,
teria criado 'coisas' e não homens capazes de transgredir. Ao criar
um Adão capaz de transgredir Deus não estava cometendo um
equívoco. Estava deixando claro que só assim teria algum
valor o gesto de aceitação, o gesto que não é
uma transgressão. Se a transgressão não existisse
como possibilidade, o ato reverente não teria qualquer valor. Se
não existisse o Nazismo, o Judaísmo não teria valor
algum. O Judaísmo é a prova de que, se a Humanidade pode
produzir algo como o Nazismo, não produz apenas Nazismo.
A Toráh deixa isto claro logo no início, quando Abrahão
coloca-se em pé, acima dos três viajantes que ele convidou
para se alimentarem e descansarem em seu acampamento. Os rabinos entenderam
muito bem a indireta: Se os três viajantes eram anjos, Abrahão
mostrou-se mais valioso que eles: Colocou-se acima deles. E como? Sendo
generoso. Sendo generoso com estranhos. Servindo-lhes uma refeição,
e servindo-os com as próprias mãos. É assim que nos
tornamos superiores, até superiores aos anjos, diz a Toráh:
quando ficamos em pé e deixamos os que estão cansados sentarem.
Quando damos a quem tem fome uma parte do nosso alimento. Quando não
perguntamos primeiro aos viajantes "Quem sois vós", para
só então, dependendo da resposta, lhes oferecermos descanso
e comida. Tornamo-nos superiores aos anjos quando as necessidades dos
estranhos são satisfeitas em primeiro lugar.
ESTRANHOS. DESCONHECIDOS. PESSOAS QUE NÃO CONHECEMOS.
TU
EHEYÉH ASHER EHEYÉH,
diz Deus, quando Moisés Lhe pergunta por seu nome. "SEREI
AQUELE QUE SEREI", diz Deus. Ou, numa tradução menos
literal, e a meu ver mais precisa, "SEJA EU QUEM FOR". A dimensão
infinita de Deus está dada aí, nessa resposta aparentemente
"malcriada", em que Ele praticamente diz a Moisés: "Deixa
de fazer perguntas idiotas. Meu nome não importa, importa apenas
a minha existência." Deus diz: "Sou um estranho, e jamais
me conhecerás."
Essa mesma resposta já está implícita num momento
bem anterior, quando Abrahão recebe desse Deus a ordem de ir até
um lugar desconhecido ("que Eu te mostrarei"...), e ali sacrificar
o seu filho. O seu filho único. O seu filho amado. Isaac. Sim,
porque Abrahão tinha dois filhos, cada um "único"
para a sua mãe, e cada qual amado. Mas era através de Isaac
que a mensagem de Deus seria levada adiante, não através
do outro filho, e eis que agora esse Deus tão esquisito lhe pede
que sacritique justamente a ESTE, a este do qual depende justamente a
divulgação para a Humanidade de que esse Deus EXISTE. Abrahão
ouve e nada diz, e trata-se de um dos silêncios mais retumbantes
de toda a literatura universal. A mudez de Abrahão ao longo de
todo o percurso só é quebrada quando seu filho, a caminho
do sacritício, lhe pergunta: "Pai, aqui estão a faca
e o fogo, mas onde está o cordeiro?" E nesse momento Abrahão
dá uma resposta que é um exemplo magnífico de como
fé, dúvida, aceitação, revolta, indignação,
humildade, amor, ódio e indiferença podem estar rugindo
ao mesmo tempo numa única alma humana: "Deus verá para
si um cordeiro, meu filho." E continuam a andar ambos juntos.
Nesse episódio do quase sacrifício de Isaac, Abrahão
defronta-se com o infinito de Deus, impossível de ser compreendido.
Com o infinito de Isaac, dono de um destino próprio, impossível
de ser evitado pelo pai. E com o infinito de si próprio, pois vê-se
prestes a realizar um ato que ele jamais imaginaria fazendo parte das
suas próprias possibilidades. Um pai que vai conscientemente matar
um filho não é um ser compreensível. Um filho que
vai ser morto pelo pai em vez de dar continuidade à sua estirpe
não é um ser compreensível. Um Deus que ordena ao
pai que mate o filho POR AMOR não é um Deus compreensível.
A situação é traumática. Tão traumática
para esses indivíduos, confrontados com a perda inexorável,
quanto o episódio do Monte Sinai, o confronto com a presença
inexorável, o será depois para todo o povo. Nesses dois
momentos o infinito se abate com toda a sua violência sobre os nossos
antepassados, e os ecos desses cataclismas nos sacodem até hoje.
TU
O infinito da dimensão humana é o que dá ao indivíduo
humano toda a sua criatividade. O infinito da dimensão humana é
o que dá a cada indivíduo a sua singularidade, transformando-o
num caso único e irrepetível dentro da história da
Humanidade.
E a Toráh nos ensina essas lições desde o início.
As idéias de infinito, de singularidade e de individualidade estão
lá desde o início.
Dizem que a Toráh é um livro de leis. E que as leis servem
para comprimir o indivíduo dentro de um código que o submete
ao coletivo.
Não: As leis servem para que os seres humanos, individuais, singulares
e infinitos consigam minimamente se entender e viver próximos uns
dos outros. A intenção das leis não é oprimir
a singularidade do indivíduo, é libertar o indivíduo
abrindo sua consciência para a singularidade do outro. Pois, como
diz Buber, é muito mais fácil - mas ao mesmo tempo muito
mais pobre - relacionar-se com coisas em vez de com seres humanos. O Nazismo
é a religião que ensina a relacionar-se com coisas. Cada
um é uma coisa, acabada, conhecida, sem perplexidades nem idéias
novas. "1984" é o livro que conta como seria o mundo
caso o Nazismo houvesse prevalecido. Uma linda fábula.
Nós, judeus, recebemos de herança essa outra visão
de mundo, que o Nazismo queria exterminar: Na nossa visão de mundo
cada ser humano é infinitamente valioso e importante. Do ponto
de vista judaico Sartre estava errado: Os outros não são
o inferno, como disse ele. Os outros são a nossa possibilidade
de viver uma vida realmente humana.
Foi esta Toráh que recebemos no Sinai, há 3312 anos
atrás, e é nessa Toráh que ainda hoje encontramos
idéias novas, capazes de nos fazer entender de modo sempre novo
a profundidade da existência humana. Buber, quando escreveu seu
trabalho sobre o Eu e o Tu, não estava realmente inovando, estava
dando nome a algo que na Toráh já estava implícito
há muitos séculos: O homem não é uma 'coisa',
o homem é um 'fenômeno' - algo que vemos mas que não
vemos por inteiro.
A assim chamada 'percepção do outro' depende inteiramente
disto. Não podemos perceber o outro se imaginarmos que somos capazes
de conhecê-lo. Pois nesse caso ele não será 'outro',
ele será 'isto' - uma 'coisa'. Hoje em dia fala-se muito da necessidade
de 'perceber o outro', da importância da 'alteridade', da fundamental
necessidade de aceitarmos o 'não saber'. Todas as três expressões
são centrais nisso que se chama o 'pós moderno'. Pois a
Toráh já é 'pós moderna' há muitos
e muitos séculos. Nela a aceitação do não
saber e a percepção do outro são fundações,
não conclusões. Abrahão era um peregrino, que veio
do outro lado do rio. Moisés era um homem gago, impaciente, fugitivo.
O primeiro "templo" judaico é um pé de sarsa,
um arbusto espinhento que nem as cabras apreciam.
Claro, o 'establishment' judaico afastou-se dessa simplicidade primordial.
E foi a essa simplicidade primeva e a essa complexidade infinita que o
Hassidismo paradoxalmente acabou voltando, ao surgir. O próprio
'establishment' hassídico afastou-se tanto de uma quanto da outra.
Mas aí está a imperfeição humana - filha da
infinitude e da singularidade - que tornam a História uma eterna
sucessão, um eterno crescimento. Como na história do indivíduo:
se você é hoje igual a quem era ontem - significa que não
aprendeu nada.
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