O HASSIDISMO COMO VISÃO DE MUNDO
Uma Reflexão para a Noite de Shavuot

Davi Bogomoletz


 

 

Todo o mundo conhece a história de Adão e Eva. Estavam os dois no Paraíso, estava tudo bem, chegou a serpente, convenceu Eva de que o fruto da Árvore do Saber não matava ninguém, Deus é que tinha ciúme de quem o comesse, pois se tornaria igual a Ele, e Eva comeu e deu um para Adão também, que não viu por que não comer, se Eva estava comendo e continuava inteira. Abriram-se os olhos de ambos, e viram que estavam nus, envergonharam-se e correram para se esconder atrás da moita, pois Deus vinha vindo, passeando que estava à brisa do entardecer. Chegando ao local onde o casal costumava ficar, e não os encontrando, Deus perguntou: "Adão, onde estás?"

O comandante da prisão onde Rabi Shneur Zalman de Liady, fundador do Chabad, estava encarcerado por calúnia das autoridades judaicas, era um homem culto e bastante sensível. Ficou impressionado com o ar majestoso de seu prisioneiro, e um dia, bom cristão que era, entrou em sua cela para fazer-lhe uma pergunta.
"Como se explica que Deus, sendo onisciente e onipresente, precisasse perguntar a Adão 'onde ele está'? Será que Deus realmente não sabia? Gostaria muito de entender isto, mas não consigo."
Disse-lhe o velho rabino: "Deus perguntou a Adão 'Onde estás?' não porque não o soubesse. Deus não queria saber onde Adão estava. Deus queria que Adão tomasse consciência de onde ele estava, agora, depois de ter cometido a transgressão. E essa pergunta não vale só para Adão - ela vale para cada um de nós, ao longo de toda a nossa vida, e ao longo de todas as gerações."

Assim, logo de saída, o tzadík nos explica há duzentos anos atrás por que a Toráh, entregue ao povo judeu há precisamente 3312 anos (segundo anúncio publicado ontem em O Globo pela filial carioca do movimento por ele fundado na Polônia), continua sendo esse livro fundamental para a nossa vida cotidiana aqui (no Rio de Janeiro) e agora (3312 anos depois).
PORQUE O QUE ESTÁ ESCRITO NÃO É O QUE ESTÁ ESCRITO.
O QUE ESTÁ ESCRITO É O QUE NÓS ENTENDEMOS DO QUE ESTÁ ESCRITO.
O texto é infinito, porque o homem que o lê é infinito, assim como o Deus que o escreveu. Por isso é preciso tomar consciência: Porque se fôssemos finitos saberíamos sempre 'onde estamos', e não seria necessário perguntar nada. A ninguém.

Para o Judaísmo não hassídico tudo isto é óbvio. Não é exatamente ignorado, simplesmente é deixado de lado. Pois para o Judaísmo não hassídico ao homem não cabe fazer perguntas. Um rabino não-hassídico não teria respondido ao funcionário russo da mesma forma. Ele teria dito algo como: "Deus sabe o que faz, e não nos cabe questionar os Seus métodos".
Do ponto de vista hassídico, embora não nos caiba questionar os métodos de Deus, nos é dada a liberdade de tentar entendê-los tanto quanto possível. O Judaísmo não hassídico também considera que o homem é infinito, mas não perde muito tempo com isso. Já para o Judaísmo hassídico, esta é uma dimensão essencial e de importância sempre presente do ser humano. Pois somos infinitos. Cada um de nós. Cada um de nós que habitamos o planeta Terra.

A beleza do Hassidismo está nesta percepção da infinitude. Foi daí que Buber extraiu a idéia do Tu - um tu infinito, que não pode ser conhecido inteiramente. Segundo Buber, as coisas concretas podem ser conhecidas a ponto de não precisarmos ficar perplexos com elas. Os seres humanos, não.
Quando nos relacionamos com um outro ser humano sem essa dimensão de perplexidade, sem esse sentimento de estranheza, sem nos darmos conta de que estamos diante de algo grande demais para conhecermos inteiramente, nesse momento estamos nos relacionamento com uma 'coisa', não com um 'ser'. Quando queremos que esse outro seja como nós o concebemos, esquecemo-nos de levar em conta que ele é como é (mesmo que ele próprio nunca saiba como é), e o transformamos em coisa. Quando alguém evita pensar e formular as próprias opiniões, adotando as de outro, transforma a si mesmo em coisa.

A religião é um paradoxo: ao mesmo tempo é preciso ouvir, aceitar a tradição, e pensar, inovar a tradição. Os que apenas seguem a tradição colocam-se na condição de 'coisas', não de 'seres'. Os que apenas formulam as próprias idéias e evitam ouvir a tradição saem fora do contexto da religião. Os que ouvem o que diz a tradição e com base nisso criam novas possibilidades estão exercendo a sua dimensão infinita.
Se Deus existe e criou o homem, mas não desejava um homem infinito, teria criado 'coisas' e não homens capazes de transgredir. Ao criar um Adão capaz de transgredir Deus não estava cometendo um equívoco. Estava deixando claro que só assim teria algum valor o gesto de aceitação, o gesto que não é uma transgressão. Se a transgressão não existisse como possibilidade, o ato reverente não teria qualquer valor. Se não existisse o Nazismo, o Judaísmo não teria valor algum. O Judaísmo é a prova de que, se a Humanidade pode produzir algo como o Nazismo, não produz apenas Nazismo.
A Toráh deixa isto claro logo no início, quando Abrahão coloca-se em pé, acima dos três viajantes que ele convidou para se alimentarem e descansarem em seu acampamento. Os rabinos entenderam muito bem a indireta: Se os três viajantes eram anjos, Abrahão mostrou-se mais valioso que eles: Colocou-se acima deles. E como? Sendo generoso. Sendo generoso com estranhos. Servindo-lhes uma refeição, e servindo-os com as próprias mãos. É assim que nos tornamos superiores, até superiores aos anjos, diz a Toráh: quando ficamos em pé e deixamos os que estão cansados sentarem. Quando damos a quem tem fome uma parte do nosso alimento. Quando não perguntamos primeiro aos viajantes "Quem sois vós", para só então, dependendo da resposta, lhes oferecermos descanso e comida. Tornamo-nos superiores aos anjos quando as necessidades dos estranhos são satisfeitas em primeiro lugar.

ESTRANHOS. DESCONHECIDOS. PESSOAS QUE NÃO CONHECEMOS.

TU

EHEYÉH ASHER EHEYÉH,

diz Deus, quando Moisés Lhe pergunta por seu nome. "SEREI AQUELE QUE SEREI", diz Deus. Ou, numa tradução menos literal, e a meu ver mais precisa, "SEJA EU QUEM FOR". A dimensão infinita de Deus está dada aí, nessa resposta aparentemente "malcriada", em que Ele praticamente diz a Moisés: "Deixa de fazer perguntas idiotas. Meu nome não importa, importa apenas a minha existência." Deus diz: "Sou um estranho, e jamais me conhecerás."
Essa mesma resposta já está implícita num momento bem anterior, quando Abrahão recebe desse Deus a ordem de ir até um lugar desconhecido ("que Eu te mostrarei"...), e ali sacrificar o seu filho. O seu filho único. O seu filho amado. Isaac. Sim, porque Abrahão tinha dois filhos, cada um "único" para a sua mãe, e cada qual amado. Mas era através de Isaac que a mensagem de Deus seria levada adiante, não através do outro filho, e eis que agora esse Deus tão esquisito lhe pede que sacritique justamente a ESTE, a este do qual depende justamente a divulgação para a Humanidade de que esse Deus EXISTE. Abrahão ouve e nada diz, e trata-se de um dos silêncios mais retumbantes de toda a literatura universal. A mudez de Abrahão ao longo de todo o percurso só é quebrada quando seu filho, a caminho do sacritício, lhe pergunta: "Pai, aqui estão a faca e o fogo, mas onde está o cordeiro?" E nesse momento Abrahão dá uma resposta que é um exemplo magnífico de como fé, dúvida, aceitação, revolta, indignação, humildade, amor, ódio e indiferença podem estar rugindo ao mesmo tempo numa única alma humana: "Deus verá para si um cordeiro, meu filho." E continuam a andar ambos juntos.
Nesse episódio do quase sacrifício de Isaac, Abrahão defronta-se com o infinito de Deus, impossível de ser compreendido. Com o infinito de Isaac, dono de um destino próprio, impossível de ser evitado pelo pai. E com o infinito de si próprio, pois vê-se prestes a realizar um ato que ele jamais imaginaria fazendo parte das suas próprias possibilidades. Um pai que vai conscientemente matar um filho não é um ser compreensível. Um filho que vai ser morto pelo pai em vez de dar continuidade à sua estirpe não é um ser compreensível. Um Deus que ordena ao pai que mate o filho POR AMOR não é um Deus compreensível.
A situação é traumática. Tão traumática para esses indivíduos, confrontados com a perda inexorável, quanto o episódio do Monte Sinai, o confronto com a presença inexorável, o será depois para todo o povo. Nesses dois momentos o infinito se abate com toda a sua violência sobre os nossos antepassados, e os ecos desses cataclismas nos sacodem até hoje.
TU
O infinito da dimensão humana é o que dá ao indivíduo humano toda a sua criatividade. O infinito da dimensão humana é o que dá a cada indivíduo a sua singularidade, transformando-o num caso único e irrepetível dentro da história da Humanidade.
E a Toráh nos ensina essas lições desde o início. As idéias de infinito, de singularidade e de individualidade estão lá desde o início.
Dizem que a Toráh é um livro de leis. E que as leis servem para comprimir o indivíduo dentro de um código que o submete ao coletivo.
Não: As leis servem para que os seres humanos, individuais, singulares e infinitos consigam minimamente se entender e viver próximos uns dos outros. A intenção das leis não é oprimir a singularidade do indivíduo, é libertar o indivíduo abrindo sua consciência para a singularidade do outro. Pois, como diz Buber, é muito mais fácil - mas ao mesmo tempo muito mais pobre - relacionar-se com coisas em vez de com seres humanos. O Nazismo é a religião que ensina a relacionar-se com coisas. Cada um é uma coisa, acabada, conhecida, sem perplexidades nem idéias novas. "1984" é o livro que conta como seria o mundo caso o Nazismo houvesse prevalecido. Uma linda fábula.
Nós, judeus, recebemos de herança essa outra visão de mundo, que o Nazismo queria exterminar: Na nossa visão de mundo cada ser humano é infinitamente valioso e importante. Do ponto de vista judaico Sartre estava errado: Os outros não são o inferno, como disse ele. Os outros são a nossa possibilidade de viver uma vida realmente humana.

Foi esta Toráh que recebemos no Sinai, há 3312 anos atrás, e é nessa Toráh que ainda hoje encontramos idéias novas, capazes de nos fazer entender de modo sempre novo a profundidade da existência humana. Buber, quando escreveu seu trabalho sobre o Eu e o Tu, não estava realmente inovando, estava dando nome a algo que na Toráh já estava implícito há muitos séculos: O homem não é uma 'coisa', o homem é um 'fenômeno' - algo que vemos mas que não vemos por inteiro.
A assim chamada 'percepção do outro' depende inteiramente disto. Não podemos perceber o outro se imaginarmos que somos capazes de conhecê-lo. Pois nesse caso ele não será 'outro', ele será 'isto' - uma 'coisa'. Hoje em dia fala-se muito da necessidade de 'perceber o outro', da importância da 'alteridade', da fundamental necessidade de aceitarmos o 'não saber'. Todas as três expressões são centrais nisso que se chama o 'pós moderno'. Pois a Toráh já é 'pós moderna' há muitos e muitos séculos. Nela a aceitação do não saber e a percepção do outro são fundações, não conclusões. Abrahão era um peregrino, que veio do outro lado do rio. Moisés era um homem gago, impaciente, fugitivo. O primeiro "templo" judaico é um pé de sarsa, um arbusto espinhento que nem as cabras apreciam.
Claro, o 'establishment' judaico afastou-se dessa simplicidade primordial. E foi a essa simplicidade primeva e a essa complexidade infinita que o Hassidismo paradoxalmente acabou voltando, ao surgir. O próprio 'establishment' hassídico afastou-se tanto de uma quanto da outra. Mas aí está a imperfeição humana - filha da infinitude e da singularidade - que tornam a História uma eterna sucessão, um eterno crescimento. Como na história do indivíduo: se você é hoje igual a quem era ontem - significa que não aprendeu nada.

 
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