TEMPO

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A virada de ano e o início de uma nova década no calendário mundial (Gregoriano) ao mesmo tempo em que comemoramos Chanucá no calendário judaico, pedem por uma reflexão sobre os sentidos de viver em dois calendários, em dois tempos. Pedimos a algumas pessoas que refletissem sobre tempos que se sobrepõem: tempo interno, tempo convenção, tempo infantil, tempo astronômico, tempo da memória, tempo de velhice, tempo de calendários diferentes,...Eis aqui suas reflexões:


TEMPOS - Sidnei Parciornik

O pintor de paredes leva seis horas para fazer o percurso de ida e volta entre sua casa, em Magé e a zona sul do Rio, onde ele trabalha na casa de um pesquisador e professor universitário.

O pesquisador trabalha no desenvolvimento de "novos materiais". Estes materiais permitem fazer chips de computador mais velozes que os atuais.

O pintor mora "lá longe" porque o aluguel é mais barato e "dá para viver melhor". Assim ele acorda às 5, viaja de 6 às 9, trabalha até às 18, chega em casa às 21 e já está quase na hora de dormir de novo depois de dar atenção à mulher e aos dois filhos.

O pesquisador trabalha para fazer com que os microcomputadores, que hoje conseguem realizar 30milhões de operações por segundo (30 Mhz ou Megahertz), cheguem à taxa de 100MHz. Nada mal. O tempo entre duas operações cairá de 0,0000003 para 0,0000001 segundos...

Enquanto o micro realiza uma operação , o ônibus que traz o pintor se desloca mais ou menos um milésimo de milímetro , algo como um centésimo de fio de cabelo.

Afinal de contas , o que significam todos estes números estranhos?

Em 1905, ao apresentar sua Teoria de Relatividade Restrita, Einstein alterou profundamente o arraigado conceito de que o tempo flui de forma igual para todo mundo. Hoje em dia vive-se uma outra espécie de conflito. Algo que talvez pudesse ser denominado Relatividade Esquizofrênica. Fica claro neste caso que metafisicamente ( e não fisicamente) o tempo assume aspectos muito diferentes para diferentes indivíduos. Esta relatividade é muito mais perversa que a de Einstein porque não advém de características fundamentais a natureza mas sim de um processo de alienação gerado pelo próprio ser humano.

As barreiras entre as pessoas assumem diversas faces , todas perversas. Todas devem ser demolidas se queremos humanizar a vida ( ou tornar viva a humanidade). Transcender o desenvolvimento comum da tecnologia para que ele realmente seja útil para todo mundo não é fácil, especialmente porque muita gente supõe que ela é "útil por definição'. Cumpre a toda a sociedade cobrar a rela socialização dos produtos deste desenvolvimento.

Sidnei Parciornik é professor e pesquisador do Departamento de Ciência dos Materiais e Metalurgia da PUC-RJ


PIRRAÇA QUE PASSA, PASSA ... - Sílvia Orthof


Numa casa toda torta,
Torta, torta, pouco importa,
Mora a Sinhá pirraça
De Fumaça,
Com seu ferro de passar.
Passatempo, passa, passa.

Por sobre uma tábua torta, torta , torta, pouco importa,
a magra Sinhá Pirraça
passa o roupão do tempo,
tempo, tempo, passará,
que o tempo,
roupão do tempo,
é de pano enrugado,
passa o tempo, passa , passa,
passa o tempo com cuidado,
cuidado, que o tempo amassa !

Na casa daquela velha,
Chamada Sinhá Pirraça,
Mora um relógio sem tempo,
Com um passarinho dentro,
Muito cuco, esgoelado,
Que vive gritando :
- Cuco !
cuco, cuco !
Tô maluco !

Quando o passarinho canta,
Pirraça , largando o ferro,
leva um susto, dá um berro,
e pernas...
prá que te quero ?

Aí, o roupão passado,
o tal roupão, que é do tempo,
faz um belo movimento,
vira um calção bailarino.
No alto do suspensório
Um lenço vai amarrado,
e nele, está bordado,
um sorriso de menino.
-
As rugas se foram embora,
O ferro caiu pro lado,
o tempo virou criança,
vai bailando pelo mundo,
dança em cima dos telhados,
e sobre um dos joelhos,
a meia do tal do tempo,
tem um buraco rasgado,
de fio esfarrapado.
O tempo é bailarino,
menino, muito levado !

Enquanto isso , a Pirraça
vai correndo atrás do tempo,
enxugando com um pano
a molhadeira da chuva.
Passa, passa, passa o pano
o tempo fugiu da velha
o tempo fugiu fugido
e se meteu por um cano
que estava entupido.

Fugiu, mas rasgou a meia,
a meia de bailarino,
um fiapo... mas que dano !
Um fiapo esfiapado
Saiu de dentro do cano !

Pirraça achou o tempo
e o puxou para fora,
deu beliscão, empurrão,
gritando : - Vamos embora !

A velha, muito danada,
não larga o tempo, não larga !
tem tempo que a paciência
de uma velha se acaba ?


O tempo esperneando,
Pirraça puxa, adoidada,
espreme as pernas do tempo
pra tirar de todo o tempo
a chuva que o encharcava.

O tempo chora, faz birra,
Bota a língua para fora,
O lenço, cara do tempo,
Soluça, chorando espirra.

Pirraça não larga o tempo,
leva o tempo para casa,
estende o tempo na tábua,
pega o ferro, sopra a brasa,
e fica passando o tempo,
vai alisando e passando,
passando o tempo em casa,
passa, passa, passatempo,
quem passa é Sinhá Pirraça.

E como acaba este história ?
Se não me falha a memória,
depois do tempo passado,
a velha entendeu o tempo,
o tempo entendeu Pirraça,
pois o tempo, quando passa,
vira um velho roupão,
confortável companheiro.
Pirraça sorriu pro tempo,
o tempo vestiu Pirraça,
a velha, no seu roupão,
conta histórias pra criança.

Chega um tempo de mudança
em tudo que a gente passa.
Mudou de nome, a Pirraça,
virou Maria fumaça,
só vendo, pra você crer !
Enquanto um bolo ela assa,
num tempo de assim, assado,
um roupão amarrotado
manda um beijo pra você.


Sílvia Orthof é escritora de livros e teatro para crianças muitas vezes premiada. Este texto foi gentilmente cedido pela Editora melhoramentos

DE ONDE VÊM OS BEBÊS ? - Maurício Lissovsky


Existiu um mosteiro, pelo menos até meados do século IX, nos domínios do imperador bizantino Miguel III, chamado Polícronos. Recebeu este estranho nome por ter sido construído no ponto de encontro de três calendários: o grego (calendário cristão antigo com início em 1 de setembro ), o judeu e o árabe. Desconheço sua localização precisa ou a identidade de seu construtor. Mas creio que quem o ergueu tinha consciência de que os três calendários não eram linhas paralelas correndo em direção ao final dos tempos ( quando então se dissolveriam em um só dia com a duração da eternidade). O que realmente me impressiona neste registro é a habilidade do Construtor em assinalar , no corpo da terra, o lugar exato da coabitação dos tempos. Lugar que encerra uma das misteriosas chaves da bem-aventurança : a temporalidade ad6amica, o tempo que vigorava no dia imediatamente anterior à Queda e à Babel dos calendários.

Foi algo parecido com este estado de bem-aventurança que os etnólogos pensaram Ter reencontrado "nas sociedades tribais", que demarcavam o tempo em "luas", estações", "colheitas", "tosqueagens". Eles designaram estes métodos de quantificação pars-pro-toto ( "a parte pelo todo "), como se fato se tratasse de uma metomínia primitiva na qual o tempo só podia ser pensado por seus efeitos, suas manifestações fenomênicas: as inscrições de sua "passagem sobre a natureza e os homens. Tais fórmulas poderiam Ter sido lidas, no entanto, de outro modo: como o reconhecimento de uma temporalidade que advém das coisas, ao contrário de abater-se sobre elas.

Todo calendário representa um esforço localizado para equacionar exigências sociais (religiosas e civis ) de quantificação do tempo com ritmos do universo que se efetuam independentemente da ação humana. Qualquer calendário comporta sempre uma tensão: é uma formação de compromisso , um equilíbrio precário - circunstancialmente satisfatório - entre o socius e o cosmo. Mesmo este calendário que os judeus eufemisticamente denominam "era comum" é portador de uma defasagem cósmica milenar, mensurável macrocospicamente.

O primeiro minuto de 01/01/1990, por exemplo soará 2 horas, 56 minutos, 15 segundos e 36 centésimos adiantado em relação ao tempo efetivamente "vivido" por nosso planeta* - simplesmente porque o ritmo dos dias e noites não coincide com o percurso da Terra em torno do Sol ( anos bissextos e meses intercalados à parte ).

Se o Construtor de Policronos quisesse reeditar, nos dias de hoje, sua obra, a tarefa seria bem mais complexa : os calendários se multiplicaram - são escolares, orçamentários, das aplicações financeiras ( que não possuem sábados, domingos ou feriados ) etc. No entanto, atenção: ele estaria embaraçado somente se seu objetivo tivesse sido proporcionar aos monges, através do encontro dos calendários, a verdadeira compreensão do tempo. Mas a intenção era mais sutil . Policronos não reproduzia a confluência dos calendários, mas sua origem. O que havia de verdadeiro ali, por uma singular situação geográfica era uma experiência viva do tempo. Ou a emergência do próprio tempo na experiência - entretecida meticulosamente em cada gesto, palavra, olhar que uma Regra de Ouro disciplinava : nunca seriam os mesmos, retornariam sempre sob uma nova forma. Os monges de Policronos sabiam que o tempo só participa efetivamente daquilo que é irrepetível. Neste caminho espiritual em busca da origem dos tempos eram guiados pela lontra, pequeno animal lunar, nadando contra a corrente dos calendários até a fonte mais pura que os alimenta. Existe um canto fúnebre romeno, muito antigo, que preserva os vestígios da missão redentora do animalzinho : "Porque a lontra sabe
A ordem dos rios
E o sentido dos vaus,
Ela te fará passar
Sem que tu te afogues.
E te levará
At/e as fontes frias
Para te refrescar
Dos arrepios da morte".

Maurício Lissovsky é Historiador e Secretário-Executivo do ISER

* Tomo por base nos meus cálculos, os dados publicados pelo astrônomo napolitano Luigi Lílio Ghiraldi, em 1603

 
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