ESTADOS
ALTERADOS DE CONSCIÊNCIA Tzvee Zahavy |
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O ato de rezar parece não se encaixar na nossa
visão moderna do mundo Quando funciona direito, a reza é
uma experiência espiritual. Porém, nossa cultura moderna
não valoriza coisas assim e ficamos intrigados: será que
a reza é mesmo tão especial ? Por que será que os
rabinos insistiram que certas rezas fossem ditas ao menos duas vezes ao
dia?
Felizmente, embora a ciência seja usada para aguçar a tendenciosidade que nos torna céticos, ela também nos oferece instrumentos para melhor entender a reza. Isto é algo novo. Somente nos últimos vinte anos é que tem sido feito um esforço no sentido de se explicar experiências espirituais em termos científicos. Pesquisa recente sobre o cérebro humano parece ter esclarecido um pouco sobre a reza. Nossa compreensão é auxiliada por termos e conceitos atuais para tipos de consciência, mais ou menos relativos aos estados de atividades do cérebro. Usando os insights da pesquisa moderna , podemos revisar algumas antigas diretrizes para a reza e sentir o que os rabinos tinham em mente ao estabelecer as duas seções principais da nossa liturgia : o Shemá e a Amidá. Os mesmos sábios que construíram a nossa liturgia básica também nos deixaram uma espécie de manual do usuário para estas rezas. Estas diretrizes s encontram na Mishná, a obra central de ensinamentos rabínicos (com 1800 anos de idade) no tratado chamado B'rachot ( bençãos). Ele fala em termos de Kavaná, um estado mental especial para rituais. Nosso objetivo é ver o que os rabinos queriam dizer quando usavam este termo. Como eu vou sugerir, parece que a Mishná quer dizer que o Shemá e a Amidá requerem o que hoje nós chamamos de "estados alterados de consciência". A psicologia da consciência Há muito tempo que as pessoas notaram duas regiões distintas na consciência humana. Numa, o pensamento verbal e dedutivo prevalece; na outra, o pensamento intuitivo e holístico. Um pesquisador moderno listou dezenove modos diferentes de expressar essa divisão da mente , tirados dos universos da ciência natural, ciência social, literatura e religião.1 Dos dois tipos de consciência, o primeiro é o comum, o do dia - a -dia, o que o pesquisador Robert Ornstein chamou de "a construção normal de consciência". 2 Experiências espirituais e místicas, no entanto ocorrem
no segundo tipo. Tais experiências constituem o fenômeno principal
destes "estados alterados de consciência."3 Num estado alterado , você faz conexões mentais entre itens díspares, relacionando-os de uma forma que desafia a lógica normal.5 Você também valoriza as coisas diferentes do normal. O significado "verdadeiro" e o lugar das coisas parecem mais claros.6 Cientistas descobriram que quando você se desliga do estado mental normal e se coloca num estado alterado, limita sua consciência do mundo externo. Você volta sua atenção para dentro de si, para longe da comunicação e dos padrões de pensamento comuns. As rezas básicas requerem uma certa consciência As mesmas idéias estudadas por pesquisadores modernos 8 parecem ter sido discutidas na Mishná. Duas frases em B'rachot apresentam a idéia de Kavaná. Nelas, os termos - chave se reportam à mesma raiz hebraica kvn, que sugere direção, geralmente de pensamento ou intenção. A unidade 2:1 de B'rachot relata a maneira apropriada de se recitar o Shemá ( que consiste em três trechos da Torá envolvidos num manto de bênçãos). Ela nos diz que se você está no processo de ler a Torá (nos versos apropriados) e chega a hora de recitar o Shemá, "se você tiver redirecionado sua mente(kiven libo), então você cumpriu com a sua obrigação (de recitar o Shemá). E se você não o fez, então você não cumpriu com sua obrigação"." Uma segunda menção à idéia de kavaná, na unidade 5:1, nos informa que "os antigos homens santos costumavam se demorar um pouco e só então rezar, para que pudessem redirigir suas mentes (iekavenu libam) para Deus". Essas duas frases apresentam um conceito básico: se a reza é para ser contada como reza - e se é para ser efetiva - , deve ser acompanhada por um componente não verbal. Quer dizer, aquele que reza está num estado mental especial. Trocando de marcha A kavaná pressupõe uma modificação na relação entre você e seu meio, porque a Mishná continua falando do modo como você pode interagir com o mundo enquanto recita o Shemá e a Amidá. Ela ordena que a pessoa alcance um estado que limite a consciência de estímulos externos, filtrando o dar e receber usual, segregando algumas formas de cognição e mudando para novos tipos de pensamento. Uma diretriz em B'rachot 2:1 narra uma disputa entre dois rabinos do século II sobre quando é apropriado interromper o Shemá. Eles ditam as regras para se oferecer ou responder um cumprimento: "Entre os parágrafos a pessoa pode cumprimentar por respeito
e responder ( por respeito). Rabi Judah disse: "No meio (de um parágrafo) a pessoa pode cumprimentar por medo e responder por respeito. "Entre parágrafos a pessoa pode cumprimentar por respeito e responder o cumprimento de qualquer um." Neste detalhe aparentemente simples , nos é ensinada a natureza da consciência própria para se recitar o Shemá. Meir e Judah discutem sobre o nível de concentração necessário. Porém, concordam com a idéia básica: a consciência do mundo externo é para ser transformada e diminuída. A unidade 2:3 continua especificando que as palavras devem ser ditas com cuidado, seja pronunciando-as em voz alta ou prestando atenção em cada letra de cada palavra. Além disso, devem ser ditas na ordem certa e sem erro. Assim, enquanto a pessoa entra num tipo de pensamento que filtra alguns elementos da consciência do dia - a- dia , concentra-se em recitar o texto prescrito. Equilíbrio de atenção Embora a noção de reza da Mishná envolva uma mudança em relação aos caminhos habituais de concentração, não significa um afastamento total da realidade. Você não abandona o contato mental com o mundo físico ou com o pensamento lógico convencional. Ao invés disso, essas forças se retiram para os bastidores. No palco da mente, a energia do mundo poético e intuitivo de símbolos e imagens toma conta do cenário. Os textos oferecem muito pouca teologia sistematizada ou mesmo um relato completo de uma história ou de um mito familiares. Eles alinhavam frases - chave que têm relação entre si, espoucando slogans familiares à sua frente. como na poesia, eles conjuminam uma figura mítica e desencadeiam uma série de idéias familiares. O significado de kavaná Baseados nas idéias tiradas da psicologia da consciência,
podemos tecer algumas hipótese sobre a natureza da kavaná.
Embora a Mishná não nos diga diretamente isso, podemos supor
que a kavaná envolva uma maior abertura para imagens holísticas
. É-nos dito que os santos homens redirigiam suas mentes "para
Deus"- e é difícil ser mais holístico que isso.
Além disso, os textos e temas oferecidos como pontos focais divergem
em lógica e caráter do pensamento usual. Eles aludem a imagens
e idéias encontradas no vasto espectro de símbolos no judaísmo
rabínico. Os pequenos trechos bíblicos do Shemá,
por exemplo, mudam rapidamente da menção da unicidade de
Deus para lealdade e submissão, seguidas pela aliança, fertilidade,
revelação, distinção social, santidade, liberação
e o messias ( a partir da interpretação dada em B'rachot
1:5). Um estado de mente flexível lida melhor com a vastidão
dessa liturgia. Cuidado com pântanos emocionais A Mishná também alerta contra os três tipos de invasão de consciência que podem dispersar a atenção necessária para a reza. Estas precisam ser evitadas para que se focalize no ritual. São elas o medo, a agitação e a dor. A Mishná focaliza primeiro o medo das alturas. B'rachot 2:4 diz que artesãos podem recitar o Shemá quando estão em cima de uma árvore ou de um andaime. Podemos presumir que a pessoa comum , que não está acostumada com alturas, não deveria tentar recitar o Shemá quando lá em cima. Em outras palavras, situações que parecem atemorizantes não contribuem para este tipo de reza. A seguir, a unidade 2:5 se volta para a agitação emocional. Ela afirma que um noivo está isento de recitar o Shemá, desde a primeira noite depois de seu casamento, até o Shabat seguinte, se ele ainda não tiver consumado o casamento. Mas a unidade 2:8 nota que se o noivo quiser recitar o Shemá na primeira noite depois de seu casamento , pode fazê-lo. Quer dizer, a Mishná vê a questão como uma distração emocional. Pessoas excepcionais que não estão sobrepujadas por seus sentimentos, podem ir em frente e recitar. Entretanto, para a maioria dos recém-casados, vários fatores se combinam de modo a tornar a récita do Shemá uma tentativa infrutífera : desejo à flor da pele, o estresse da mudança de status social e a perspectiva de satisfazer o desejo de toda uma vida de se ter um parceiro. O terceiro exemplo de emoção dispersiva é a dor, indicada em 3:1-2."Se seu parente morto ainda não foi enterrado, você está isento das obrigações" de recitar o Shemá, de dizer a Amidá e de usar tefilim (filactérios). A dor dispersa a concentração porque a tristeza é um estado mental independente. A Mishná vê a tristeza como afetando não só os que estão de luto. Ela a vê como um sentimento contagioso que toma conta de todos os participantes de um funeral. Aqueles que estão mais diretamente envolvidos compartilham da tristeza mais intensa: "Os que seguram o caixão são isentos" de dizer o Shemá, mas não aqueles que acompanham na procissão funerária. Indo ainda mais fundo O tratado B'rachot faz uma distinção entre graus de concentração para diferentes liturgias. Isso aparece primeiro na unidade 2:4, que diz que, enquanto artesãos podem recitar o Shemá do alto, não podem fazê-lo para a Amidá. Quer dizer, o Shemá requer um certo nível de concentração; a Amidá requer um outro nível, mais intenso, um estado mental diferente. Nas palavras da Mishná, até mesmo os artesãos têm que descer da árvore para poder dar o tom exato à Amidá. A unidade 3:1, como vimos acima, isenta alguns participantes de um funeral de dizer o Shemá mas não outros. Entretanto, acrescenta, todos os que participaram da cerimônia são isentos da Amidá. A participação em qualquer nível de um funeral é presumível de criar um estado de distração que influenciaria na concentração mais profunda necessária para a Amidá. Assim, nosso tratado pressupõe não apenas um, mas dois estados alterados de consciência: ele diferencia entre os níveis de consciência requeridos para rezas diferentes. A Mishná B'rachot 5:1 fala um pouco mais sobre o segundo, o estado mental especial para a Amidá: "Somente num estado mental solene(koved rosh) é que se está pronto para dizer a reza (Amidá)."Além disso, você limita ainda mais sua consciência do mundo ao seu redor. Você se recolhe tão para dentro de si, que a ameaça de um perigo social ( um déspota) ou um perigo natural (uma cobra venenosa)não pode distraí-lo:" Mesmo que um rei o cumprimente, você não responde; mesmo que uma serpente esteja encolhida aos seus pés, você não interrompe." Como os comentários tradicionais notam, esta linguagem extremista quer passar a idéia do nível de atenção necessário para esta reza, mais do que o que fazer quando sua vida está claramente em perigo. Originando um sentido dos textos de reza Dar-se conta de que a reza funciona somente dentro de estados alterados de consciência traz em si um resultado importante. As tentativas de se explicar ou reescrever textos de reza são feitas não sem risco, por causa da própria natureza da liturgia. A reza utiliza uma sintaxe diferente do enfoque direto da lei, da história ou até do mito. Como a poesia, a reza se fia numa lógica especial, mais adequada ao mundo da consciência intuitiva, holística. Assim, nós encontraremos dificuldades em descrever, estudar, julgar ou justificar estes textos expressivos se usarmos métodos analíticos de um nível de pensamento que é estranho a eles. Podemos apenas dizer que os textos servem como objetos para se focalizar e contemplar , permitindo que se dê comunicação pela sintaxe especial e a lógica do estado alterado do que reza. A razão pela qual as palavras das rezas fazem um sentido diferente pode ser fisiológica. A reza parece atingir uma outra parte do cérebro que a do discurso normal. Num memorável caso médico em 1745, um sujeito teve um ataque violento de uma doença que resultou na paralisia do lado direito de seu corpo e na perda completa da fala, presumivelmente como resultado do estrago no lado esquerdo do seu cérebro. Porém, como escreveu uma testemunha: "Ele pode cantar certos hinos, que aprendeu antes de ficar doente, tão clara e distintamente como qualquer pessoa saudável. Entretanto deve ser notado que no início do hino ele precisa ser ajudado por uma outra pessoa cantando junto com ele. Similarmente, com o mesmo tipo de ajuda, ele pode recitar certas rezas sem cantar , mas com um certo ritmo e uma voz aguda e gritada. No entanto, este homem é mudo, não consegue pronunciar uma só palavra exceto 'sim' e tem que se comunicar fazendo sinais com as mãos."10 Conclusão Parece que para a Mishá, a reza é um ritual de discurso especial. Ela presume uma mudança da consciência comum para um tipo mais intuitivo de pensamento. A reza também requer uma diminuição de consciência do meio. Enquanto isso, você recita um texto padronizado ou um conjunto de temas. Isso o ajuda a se manter nas esferas de pensamento intelectual apropriado, mito, história e visão de mundo. O tratado B'rachot parece tratar a reza como um ritual no qual você caminha na fronteira entre o pensamento intelectual e a consciência intuitiva. Por um lado, tal reza serve para libertá-lo das limitações do pensamento em linha reta. Por outro, você mantém algum contato com as escrituras lógicas da realidade comum. O estado mental para esse tipo de reza não é o de transe ou de meditação profunda, nem o de livre associação ou de emoção arrasadora. Também não é somente o de pensamento lógico, de contar histórias ou de construção de mitos ou de reflexão. É um estado superior de consciência intuitiva ligada a um ajuste controlado com a consciência comum.. Além disso a Mishná faz uma distinção entre dois níveis de concentração. O primeiro é definido por um afastamento do contato social enquanto se recita o Shemá. O segundo, durante a Amidá, significa se alienar ainda mais de seu meio e focalizar nas imagens intuitivas da liturgia. Por último nós vimos que a Mishná parece reconhecer que o estado alterado de consciência necessário para as rezas básicas é impedido por emoções extremas. Através da utilização de termos e conceitos da moderna pesquisa sobre o cérebro, nós definimos o que é que os arquitetos da reza rabínica podem ter querido dizer com kavaná. Ele queriam que ficássemos à vontade com os estados alterados de consciência; pois é de dentro desses estados mentais que podemos encontrar verdade e um significado profundo para nossa existência no universo. Notas 1 A . Deikman, Bimodal Consciousness", in Robert E. Ornstein, The nature of Human Consciousness . San Francisco, W.H. Freeman, 1973,p.67-86 2 Robert E. Ornstein, The psychology of Consciousness, New York, Harcourt, Brace, Jovanovich, 1977,p.185 3 Charles Tart, "States of Conciousness and State Specific Sciences", in the Nature of Human Consciousness p.59. 4 Tart. and R. E. Ornstein, The psychology of Consciousness. 5 Ornstein, The Psychology of Consciousness e the Nature of Human Consciousness. 6 Tart, in The Nature of Human Consciousness, p. 41-60 7 Ornstein, The Psychology of Consciousness, p. 178f.; Deikman,"Bimodal Consciousness", p.67-86. 8 Este trabalho não se propões a reduzir a reza a um estado fisiológico ou mesmo a um estado mental. Ao contrário, propõe-se a descrever a reza através de uma leitura da Mishná sob a luz de certos insights conceituais. Quer dizer, seja ou não a consciência um estado material do cérebro, os conceitos utilizados na pesquisa psicológica parecem ajudar na descrição dos estados mentais associados à reza. 9 Eu uso "você" para evitar preocupações sobre gênero. 10 J. E. Bojen, "The Other Side of the Brain: Na Appositional Model", in the Nature of Human Consciousness, p.101-125
Tzvee Zahavy é professor associado de Estudos Clássicos e do Oriente Próximo na Universidade de Minesota, onde recebeu um prêmio de distinção no magistério em 1985. Ele é o autor de um livro recente, The Mishnaic Law of Blessings and Prayers (Brown Judaic Studies, Scholars Press, Atlanta, 1987).
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