RABINO E DOADOR

RABINO NILTON BONDER


 

 

Foi divulgado com destaque pela imprensa que o guitarrista Marcelo Fromer não teria podido ser enterrado em cemitério israelita por conta da doação de seus órgãos. Esta informação não procede e, embora desmentida, pela extensão de sua divulgação, repercutiu de forma bastante negativa tanto para a causa da doação de órgãos como para a comunidade judaica.

Não sei como esta informação equivocada veio parar na primeira página de vários jornais quando a família havia tomado a decisão de enterra-lo por conta própria. A leviandade consistiu, além da precipitação de uma informação errada, no tom sensacionalista e irresponsável acerca da injustiça de um grupo que penalizava o bem e o correto.

Cabem, portanto, duas explicações que ficam mais como registro do que como expectativa de desfazer uma notícia com a amplidão de um cabeçalho de primeira página:

Não existe a proibição de enterro em cemitérios judaicos daqueles que tenham doado órgãos. Tome-se em consideração que a aberração maior para a tradição judaica em termos de comportamento com a vida é o suicídio. Mesmo o suicida não é impedido de ser enterrado no cemitério, cabendo-lhe no passado a pena de ser enterrado junto ao muro ou nos limites do cemitério. Tomemos o doador de órgãos como o oposto do suicida, como alguém que valoriza a vida a tal ponto que deseja preserva-la mesmo quando não a pode preservar em si. Não seria de se esperar que um ato de amor e solidariedade viesse a ser execrado como foi sugerido.

A segunda questão no que tange à doação de órgãos, a tradição judaica, que como toda tradição tem múltiplas correntes, não se opõe consensualmente aos mesmos. A preservação da vida é um valor máximo de uma tradição que contribuiu à nossa civilização nada menos do que com preceitos que incluem: "não matarás"; "e escolherás a vida" e "ama a teu próximo como a ti mesmo". Não existem ressalvas do judaísmo à intenção de doar órgãos que representa uma das poucas brechas no mundo moderno para um comportamento menos alienado e mais solidário. Salvar vidas tem precedência a todo o tipo de observância religiosa ou dogma religioso desde que não seja às custas de outra vida. É esta exceção, demandando igual respeito à vida do doador, que apresenta dificuldades para o segmento ortodoxo uma vez que para o sucesso dos transplantes os órgãos devem ser retirados logo após a confirmação da morte cerebral, quando o corpo ainda preserva certos sinais vitais.

Os métodos e critérios de doação de órgão devem estar sob questionamento sempre, sendo matéria consensual apenas o desejo de salvar vidas e a solidariedade. É uma discussão mais ampla do que determinar se é "certo ou errado" e repassar à classe médica e política a responsabilidade e a autoridade de determinar métodos e critérios.

Aspectos como o critério na declaração da morte, a mercantilização de órgãos e uma possível atitude desrespeitosa de "desmonte" desnecessário de órgãos, são questões que sim intervém no bem e no mal, no certo e no errado.

Nossa civilização carece de reflexões mais profundas diante dos avanços científicos que não podem unicamente se valer do desejo de "salvar" a vida, sem ponderações sobre a própria vida de forma mais profunda. Entenda-se que o grande inimigo da vida não é a morte, mas o desejo de imortalidade a qualquer preço. Pecado esse que esta no âmago de nossa civilização. Não é à toa que em nome da preservação da vida tantas barbáries e torturas são realizadas em nossos hospitais e CTIs. São tormentos originários de nosso desejo de controle e nosso medo da morte. Há uma urgente convocação à filosofia, a ética e a espiritualidade para nos ajudar a pensar de forma não consensual e unânime para que reflita as verdadeiras tensões inerentes em todas estas questões.

Marcelo Fromer fez o que de mais nobre um indivíduo pode fazer. Cabe a nossa sociedade proteger este tipo de decisão e criar as condições para que ela possa ser feita com o mínimo ou, se possível, sem ressalvas. Que possa ser uma extensão de nosso compromisso com a vida e não com a imortalidade; com valores profundos de respeito e não apenas um consenso moral.

Seu ato foi um legado em prol de uma causa fundamental. Nada tinha a ver com os judeus e a questão de doação de órgãos, nada tinha a ver com punições e formas de execrar que não existem. A emoção do momento pedia um cuidado maior com o foco e com a qualidade das informações.

 

 
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